A esperança no começar de novo
Trilha sonora para ler este texto: Kooks, David Bowie
Finalizei o ano ado com um artigo mais ácido e crítico. Como mencionei naquele texto, por ser uma pessoa que não se contagia com o espírito das festas de confraternização de final de ano, meu mau humor pode ter interferido no desenvolver do raciocínio.
Por outro lado, sempre fico animada com o início de um novo ano e acredito que, mesmo sendo apenas uma questão de calendário, temos a oportunidade de um novo início.
E foi refletindo sobre novos inícios, na repetição de ciclos, no fazer de novo, no nosso desenvolvimento como seres humanos que acabei pensando nas crianças e jovens como tema desta primeira coluna. Repito, também, ao fato de eu ter assistido ao episódio ‘A importância do brincar’ do programa Café Filosófico, em que Renata Meirelles e Severino Antônio dialogam a respeito dos efeitos do lúdico no desenvolvimento mental e psicológico dos seres humanos.
No referido programa, Renata e Severino buscam desconstruir o conceito de que uma criança é uma tela em branco preparada para receber as cores a serem atribuídas pelos pais e educadores. Todo ser humano, em fase de crescimento já tem o instinto e a sabedoria de vários temas e apenas precisa de estímulos para continuar o acúmulo de outros conhecimentos. Educar é uma troca entre pais e filhos.
São as crianças que guardam tantos conhecimentos que acabamos por esquecer no decorrer da vida. Quantas vezes não acompanhamos a brincadeira das crianças que gostam de montar e desmontar coisas, em um eterno fazer de novo? Quantas vezes na vida temos que começar tudo de novo? Todo dia é um começar de novo: acordamos, tomamos banho, fazemos exercício, tomamos nosso café da manhã, iniciamos um novo dia no trabalho ou na escola e assim por diante até irmos dormir e no dia seguinte repetirmos a maior parte das mesmas atividades. Quantas vezes participamos de processos seletivos, entrevistas de emprego, ou outros desafios que a vida adulta nos impõe e não obtemos o êxito na primeira tentativa e nos sentimos frustrados? Fato é que processos seletivos, provas, entrevistas, por vezes, precisam ser repetidos de novo, de novo e de novo. Sabemos do começar de novo quando crianças, mas esquecemos disso na fase adulta.
É trazendo essas lições sobre o que crianças e jovens podem nos oferecer, que precisamos protegê-los e garantir uma estrutura favorável para o desenvolvimento. Crescer pode ser estimulante, mas também apresenta uma série de desafios, inseguranças, medos e frustrações.
Ao falarmos sobre infância e adolescência, acredito que a maior parte de nós terá memórias sobre estes períodos. Algumas memórias boas e outras nem tanto. Mas se estivermos um pouco mais distantes destas fases da vida, pode ser que tenhamos esquecido um pouco das frustrações que tínhamos que lidar e, com isso, podemos ter dificuldade para compreendermos o que as crianças e jovens de hoje estão ando ou encontrarmos dificuldade para nos comunicarmos com eles.
O filme ‘Boyhood’, de 2014, dirigido por Richard Linklater, é um clássico e marco no cinema por ter sido produzido e filmado ao longo de 12 anos. O filme é o acompanhamento ano a ano do crescimento de um jovem norte-americano chamado Mason Evans Jr., desde os seus 6 anos até os 18 anos. Recomendo a experiência porque o filme apresenta o ponto de vista de um garoto introspectivo que vai lidando com os fatos da vida, em especial por ser criado por pais separados. É claro que, em que pese o garoto ter que enfrentar episódios de violência doméstica sofrida pela mãe, o desejo de ter a atenção de um pai que parece não ter maturidade para ser pai, dentre outros desafios que a vida vai lhe apresentando em cada fase da vida. Trata-se da narrativa de um garoto branco norte-americano que goza de uma série de privilégios. Não é o melhor aluno da escola, mas também não é o pior. Tem a oportunidade de ter dúvidas e escolher a carreira como fotógrafo ao ingressar na faculdade. Em seus aniversários, recebe presentes dos avós e tem o apoio da família e da rede de amigos. Aliás, um dos momentos mais curiosos do filme é o presente que ganha de um dos avós no aniversário de 15 anos: um rifle de caça. É exatamente aí que percebemos que a cultura norte-americana do Texas é tão comum até os dias atuais.
Críticas à parte, acredito que seja um filme importante para refletirmos sobre o modo como educamos nossas crianças, os valores e exemplos que reamos, a dificuldade de comunicação entre pais e filhos em assuntos como sexo e drogas, dentre tantos outros dilemas que quase toda pessoa já enfrentou. Oferece ainda uma perspectiva sobre maternidade e paternidade. Trata-se de um filme sobre o crescimento de um garoto classe média, que é a realidade de um número incontável de jovens brasileiros.
Para fazer um contraponto a Boyhood, gostaria de trazer outro exemplo de um filme não tão famoso, mas que apresenta o processo de crescimento de outro jovem: Sócrates, filme brasileiro de 2018, dirigido por Alex Moratto. Ao contrário do protagonista de Boyhood, mesmo sendo filho de pais separados, não conta com a mesma rede de apoio. Sócrates é um jovem negro, de 15 anos, que um dia acorda e encontra sua mãe morta. A mãe trabalhava como faxineira e sustentava Sócrates sozinha em razão dos maus tratos que sofria do pai do garoto. No decorrer do filme, descobrimos que um dos motivos da violência é o fato de o pai não aceitar o fato de Sócrates ser homossexual. A trajetória de Sócrates ao longo do filme, tendo que lidar com o aluguel vencido, a burocracia para poder receber as cinzas da mãe, a necessidade de encontrar sustento, mas não ter idade suficiente para trabalhar, a impossibilidade de poder estudar, o racismo e a homofobia por ele sofrida, é a narrativa real enfrentada por um outro número incontável de tantos outros jovens brasileiros.
Sócrates é o personagem que nos faz lembrar sobre a necessidade da existência de políticas públicas estruturadas para nossas crianças e adolescentes que se encontram em vulnerabilidade social.
Partindo de uma breve perspectiva histórico-normativa, os direitos da criança e do adolescente constam na Declaração Universal de Direitos Humanos no artigo 25, que trata do nível mínimo de vida a ser assegurado para garantir a dignidade da pessoa, com redação destacada no item 2 deste artigo, que expressamente prevê que “a maternidade e a infância têm direito a ajuda e a assistência especiais. Todas as crianças, nascidas dentro ou fora do matrimônio, gozam da mesma proteção social”.
De forma mais detalhada, a Convenção sobre os Direitos da Criança, de 20 de novembro de 1989, elege as crianças do mundo como sujeitos que merecerem especial proteção por estarem em desenvolvimento e é a convenção mais aceita e ratificada no mundo. No Brasil, esta Convenção foi assinada, ratificada[1] e promulgada pelo Decreto nº 99.710/1990.
Na mesma perspectiva de proteção especial, assim foi a previsão constitucional (artigos 226 e seguintes da Constituição Federal) e a edição da Lei nº 8.069/1990, também conhecida como Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).
Portanto, em termos normativos, podemos dizer que estamos muito bem. São previstos os direitos à vida, à saúde, à educação, ao lazer, à profissionalização, à liberdade, à convivência familiar e comunitária, além de combater toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. No entanto, como eu sempre costumo apontar em minhas aulas e palestras, tudo seria muito fácil e perfeito se a realidade se modificasse a partir de uma previsão legal. A lei – seja ela uma convenção, um tratado internacional, o texto constitucional ou uma legislação ordinária – apenas sinaliza para a sociedade um horizonte para o qual se deve caminhar. Ela aponta para um ideal a ser perseguido para garantir a boa vida social. Mas entre lei e realidade, existe um abismo extremamente profundo.
Em escala global, 1 em cada 2 crianças menores de 5 anos sofre de fome oculta, é o que aponta o relatório ‘Situação Mundial da Infância 2019: crianças, alimentação e nutrição’, divulgado pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF). Fome oculta é a deficiência de vitaminas e minerais essenciais para o crescimento físico e mental de uma pessoa saudável. Em termos numéricos, estamos falando de 340 milhões de crianças que possuem deficiência de nutrientes. Outro dado alarmante, apresentado pelo Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC), refere-se ao percentual de crianças que são vítimas de tráfico humano: 1 em cada 3 vítimas é criança, o que equivale a 30% do total de pessoas traficadas, e o principal motivo é a exploração sexual. Ainda, desde 2010, a ONU registrou mais de 170 mil violações graves, como assassinato, mutilação, violência sexual contra crianças em países em conflito, além de recrutamento e uso de crianças por forças armadas e ataques contra escolas. Atualmente, o número de países em conflito é o maior desde a criação da Convenção sobre os Direitos da Criança em 1989.
E a realidade brasileira não está distante de um cenário igualmente desolador. O relatório elaborado pelo UNICEF ‘Pobreza na Infância e na Adolescência’ apresentou que 39,7% das crianças brasileiras entre 0 e 5 anos têm seus direitos violados, e o porcentual aumenta para 60% para a faixa etária dos 14 aos 17 anos. Isso representa a violação de direitos de 27 milhões de crianças e adolescentes. Dentre algumas violações, a pesquisa ‘Trabalho Infantil nos ODS’ apontou que trabalho infantil é realidade para 998 mil crianças brasileiras. Também a violência sexual chega a números absurdos, como os dados apresentados pelo Boletim Epidemiológico, que registrou 184.524 casos, sendo 51% contra crianças de 1 a 5 anos. Igualmente grave são os 200 casos diários de crianças e adolescentes agredidos no país, conforme aponta o levantamento feito pela Sociedade Brasileira de Pediatria.
Estes dados são números que representam histórias como a de Sócrates. E se estamos em um cenário em que a maior parte das nossas crianças não está protegida, teremos que lidar com adultos com vários problemas no futuro.
Mas como estamos no início de um novo ano, acredito que temos a chance de começarmos a contribuir para uma nova realidade para nossas crianças e jovens, seja no âmbito privado como público. Dentro de nossas casas, em nosso convívio familiar e rede de amigos, podemos contribuir para o bom desenvolvimento de nossas crianças, seja nos oferecendo para cuidarmos dos filhos dos nossos amigos quando eles precisam trabalhar, seja conversando com as crianças, seja brincando com elas. Reitero aqui a importância do lúdico para nossos pequenos e o tempo que precisamos dedicar a eles para esta atividade. Quantos dos pais que conhecemos acabam recheando a agenda de seus filhos com infinitas atividades extracurriculares para que todos estejam preparados para a competitividade da vida adulta? Quanto das responsabilidades de um ser adulto estamos atribuindo a crianças que só precisam ser crianças e gozarem de tempo livre? E o quanto de todas essas atribuições não acabam contribuindo para o desenvolvendo de problemas mentais como de ansiedade, depressão e pânico em nossos jovens?
E no âmbito da nossa responsabilidade social, quanto temos contribuído para a proteção de nossas crianças e jovens em situação de vulnerabilidade social? Evidente que o poder público tem a sua parcela de responsabilidade por não difundir informações sobre projetos e políticas, mas também é possível sermos cidadãos mais ativos e buscarmos os dados sobre instituições e processos que possam colaborar para o fortalecimento de nossas políticas públicas.
Exemplo disso é participarmos das eleições dos conselhos tutelares de nossas cidades. A prefeitura de toda cidade tem a responsabilidade de organizar e divulgar o processo de eleição de seus conselheiros tutelares. Trata-se de uma previsão do ECA (aquela lei que mencionei no início deste artigo). Na cidade de São Paulo, para termos uma ideia, existem 52 conselhos tutelares espalhados pelo território paulistano e a eleição destes conselheiros ocorreu em outubro do ano ado. O mandato destes conselheiros valerá até janeiro de 2024, portanto, as próximas eleições ocorrerão no segundo semestre de 2023. Toda pessoa que tem título de eleitor pode participar desta eleição. E quem não votou na última eleição, pode acompanhar o mandato do conselheiro responsável pela sua região, basta ar as informações no site da Prefeitura de São Paulo, onde consta a lista dos candidatos eleitos. Vale lembrar que são os conselheiros tutelares os responsáveis pelas funções de escutar, orientar, aconselhar, encaminhar e acompanhar casos e denúncias envolvendo violações aos direitos da criança e adolescente. Também no site da Prefeitura de São Paulo há explicações sobre os deveres dos conselheiros e os endereços dos locais de atendimento.
Outro exemplo é contribuirmos para projetos que são financiados pelo FUMCAD (Fundo Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente) de nossa cidade. Também previsto pelo ECA, toda cidade tem a responsabilidade de constituir este fundo destinado a prover recursos para projetos voltados a crianças e adolescentes. A principal fonte de captação de recursos é o Imposto de Renda, sendo possível abater o valor doado no IR. No caso da cidade de São Paulo, as informações sobre este procedimento podem ser adas aqui. Vale destacar que este fundo é gerenciado pelo Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente (CMDCA) e fiscalizado pelo Ministério Público de São Paulo. Neste site que mencionei, você pode escolher a entidade beneficiária da sua doação e poderá acompanhar o desenvolvimento do projeto, seja pelo site, seja participando das reuniões do CMDCA.
Estes exemplos que apresentei apenas ilustram como podemos nos movimentar e exercitarmos nossa cidadania, seja num plano maior ou menor. Mason é o personagem que nos faz lembrar sobre a importância da consciência dos pais no educar dos filhos. Enquanto Mason é a nossa responsabilidade privada, Sócrates é a nossa responsabilidade pública. A sociedade não é composta somente por Mason, mas uma grande parte de Sócrates. Cabe a todos nós trabalharmos juntos para que nossas crianças tenham mais dilemas como os de Mason em vez dos enfrentados por Sócrates.
[1] Aqui vale uma breve nota explicativa para o público que não tem familiaridade com os termos jurídicos. Para uma convenção ou tratado internacional integrar o ordenamento jurídico interno de um país, é necessário observar um procedimento interno em que o país (Estado-parte da Organização das Nações Unidas) reconheça o ato normativo, para tanto, no caso do Brasil, uma convenção a a integrar o ordenamento jurídico a partir do momento da promulgação por meio de um decreto presidencial (na realidade, existe um longo debate na doutrina de Direito Internacional sobre o momento em que uma convenção a a fazer efeito no ordenamento jurídico, mas não irei me estender neste aspecto técnico jurídico).
*A opinião dos colunistas não reflete, necessariamente, a opinião do Observatório do Terceiro Setor.