Vamos falar sobre os Direitos Humanos das vítimas?

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Na coluna anterior, procurei oferecer subsídios para juntos pensarmos se Direitos Humanos são direito “de bandido”. Arrisco dizer que é razoável concluir que sim, Direitos Humanos são direitos de “bandidos”. E também de “não-bandidos”. E também de professores, padeiros, médicas, artesãos, jogadoras de basquete, babás e cientistas políticos. E de canhotos, católicos, não-fumantes, alcoólatras e palmeirenses.

Em outras palavras, espero ter esclarecido que a própria noção de Direitos Humanos decorre da ideia de igualdade jurídica segundo a qual determinados direitos fundamentais não podem ser restringidos – senão nos limites impostos pela lei – e essa regra deve valer de forma igual para todos. Até para “bandidos”.

Também comentei nessa coluna anterior que muitas vezes quem trabalha na área de Direitos Humanos é questionado sobre o porquê de (quase) ninguém falar sobre os ditos “Direitos Humanos das vítimas” – e deixei combinado que voltaria ao tema na próxima coluna.

Neste meio tempo, foi publicada pesquisa Datafolha segundo a qual se apurou que 50% dos entrevistados concordam com a assertiva “bandido bom é bandido morto”.

E o que tem a ver o resultado desta pesquisa com os direitos humanos das vítimas?

Na minha leitura, muito.

Minha hipótese é que muitas pessoas se identificam mais com as vítimas do que com os acusados de crime, e se sentem mais ameaçadas pela violência urbana decorrente da criminalidade (temor este natural, legítimo e justificado) do que pela violência praticada por um agente do Estado ao matar um “bandido”(e aqui essa ausência de temor é quase incompreensível, pois mesmo pessoas que pertencem a setores sociais mais expostos a este tipo de violência não raro acreditam estarem imunes a ela por serem “cidadãos de bem”). Mas, sem dúvida, essas pessoas sentem medo. E querem se sentir seguras. E aí, por uma miríade de fatores, são convencidas de que o extermínio de delinquentes potenciais ou concretos, reais ou imaginários, é a solução para este sentimento tão angustiante. Confundem isso com um suposto “direito da vítima” a ver seu algoz morto, ou no mínimo preso por um bom tempo.

Mas é bem verdade que os direitos das vítimas de crimes – os direitos verdadeiros, previstos em lei – muito raramente são abordados, seja pelas autoridades, pela imprensa e mesmo por parcela expressiva de entidades que militam na defesa dos direitos humanos. Talvez apenas por desconhecimento, mas muito provavelmente porque estes direitos implicam a adoção de políticas públicas que envolvem custo. Mais fácil é manipular a opinião pública e sustentar que o direito da vítima consiste na punição do acusado, de preferência, da forma mais severa possível, e ainda que ao arrepio da lei. E, como se sabe, fazer propaganda política com todas as seduções da lei penal é mais popular e mais barato.

Aqui vale retomar o assunto da coluna anterior, em que falamos sobre Direitos Humanos e o sistema de Justiça criminal: o Direito Penal é o conjunto de normas que regula a aplicação das penas, como o próprio nome diz. Trata-se de relação de direito material e processual estabelecida entre Estado e autor de crime, e nada tem a ver com a vítima.

Mas, então, a vítima não tem qualquer relação com o processo penal?

Bem, a vítima não é parte da ação penal, pois quem processa o acusado de um crime é o próprio Estado, na figura do Ministério Público, que representa a Justiça Pública. Mesmo assim, o Código de Processo Penal contém previsões relativas à pessoa que sofreu o crime: em seu artigo 201, estabelece que a vítima tem o direito de ser comunicada dos atos processuais (inclusive aqueles relativos ao ingresso e à saída do acusado da prisão) por correio ou por e-mail; de permanecer em espaço reservado separado do acusado antes da audiência; de não ser punida caso não diga a verdade em seu depoimento à Justiça (aliás, exatamente como ocorre com o réu: vítima e acusado estão envolvidos de maneira tão pessoal nos fatos que nem mesmo o ordenamento jurídico exige deles imparcialidade e isenção de ânimos, e daí o afastamento da vítima da relação penal).

Como se vê, a relação da vítima com o processo penal em si é mínima, e isso não é um problema: o problema é insistir em integrá-la nesta relação Estado/acusado/direito de punir, e assim a afastar de seus reais direitos diretamente decorrentes do fato de ter sofrido um crime.

E que direitos são estes, que decorrem do ato criminoso de alguém, e da ineficiência do Estado em garantir o direito fundamental à segurança?

Antes de mais nada, a vítima tem o direito a ser indenizada pela pessoa que praticou o crime, caso esta seja condenada pela Justiça Criminal.

Em relação ao Estado, há direitos talvez ainda mais importantes que a mera monetarização da violência – e menos comentados – e que desde 2008 encontram-se previstos em lei. O mesmo artigo 201 do Código de Processo Penal estabelece o direito ao atendimento multidisciplinar (a depender de avaliação da necessidade pelo juiz), especialmente nas áreas psicossocial, de assistência jurídica e de saúde, a expensas do ofensor ou do Estado. Embora o próprio texto da lei preveja que os custos deste atendimento podem ser cobrados do autor do crime, nada impede legalmente que o Estado garanta este atendimento, para posteriormente cobrar o acusado em ação cível especialmente ajuizada para este fim.

Este artigo também estabelece o dever do juiz enquanto representante do Estado de assegurar a preservação da intimidade, vida privada, honra e imagem do ofendido. É direito não só do réu, mas também da vítima, não ter a sua vida devassada nos meios de comunicação, e isso inclui as informações a respeito do inquérito policial e do processo.

Vale lembrar, ainda, que falta na lei – e mais ainda na prática policial e forense – uma especial atenção ao problema da revitimização: o cidadão ou cidadã vítima de crime muitas vezes é submetido a tratamento burocrático e desumanizado já nas delegacias de polícia (onde é feita a primeira comunicação de um fato delituoso às autoridades), o que acaba por desencorajar denúncias e declarações que poderiam ser úteis para solucionar crimes, e isso para não mencionar – aí, sim – a absoluta falta de solidariedade para com um indivíduo em posição de extrema e justificada vulnerabilidade. A depender do crime em questão, a vítima é novamente colocada em situação de violações, o que é especialmente frequente em casos de violência sexual e violência doméstica – e talvez por isso tenham sido pioneiras as iniciativas de prestar um atendimento diferenciado às vítimas de crimes desta natureza (direito este, aliás, que o Projeto de Lei 5.069/2013 pretende restringir, ao propor criminalizar o oferecimento de contracepção de emergência para mulheres vítimas de estupro).

Creio que é hora de questionarmos com lucidez e tranquilidade de ânimos a manipulação perversa, demagoga e populista dos sentimentos de pessoas vitimadas por crimes (ou que se identificam com as vítimas nas situações de violência), fazendo crer que punir severa e exemplarmente é garantir o direito da vítima: não só não é direito da vítima, e sim do Estado, como muitas vezes viola direitos do acusado, acarretando uma série de outros problemas, sem resolver, nem de longe, o problema da segurança pública. De outro, esta manipulação engana escandalosamente a população, que sequer toma conhecimento de seus direitos que, talvez possam trazer algum sentimento de paz e de justiça.

Maíra Cardoso Zapater

É Doutora em Direitos Humanos pela USP, graduada em Direito pela PUC (SP) e Ciências Sociais pela USP. É especialista em Direito Penal e Processual Penal pela Escola Superior do Ministério Público de São Paulo; professora, pesquisadora e autora do blog deunatv (https://deunatv.wordpress.com/).

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