Tudo o que é proibido é crime?

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Tudo o que é crime é proibido. Mas nem tudo que é proibido é crime.

Não se trata aqui de querer simplesmente fazer um jogo de palavras para brincar com a lógica, mas sim de explicar que existem várias formas de o Estado criar normas que regulamentam as condutas dos cidadãos – e, vale dizer, dos próprios governantes. Saber cada uma delas – e quando se está ou não incidindo em crime – faz parte do direito à informação sobre seus próprios direitos, e, portanto, integra o direito à liberdade.

No ordenamento jurídico brasileiro (na verdade, em parcela expressiva dos ordenamentos jurídicos ocidentais), o legislador indica ao cidadão que determinada conduta é proibida ao prever uma sanção para quem a praticar. Em outras palavras, nosso conjunto de leis e normas demonstra quais condutas não podem ser praticadas determinando que as pessoas que realizarem tais atos receberão um “castigo”- ou sanção, em juridiquês.

Há, basicamente, três tipos de “castigo”: pode-se aplicar uma sanção istrativa, uma sanção cível ou uma sanção penal. Significa dizer que há três formas diferentes de se informar ao cidadão e aos governantes quais condutas são contrárias à lei, daí se falar em ilícito istrativo, ilícito civil e ilícito penal.

Os exemplos são muitos: o Código de Trânsito Brasileiro proíbe aos motoristas trafegar em velocidade superior à permitida para cada via. Quem viola essa proibição recebe um “castigo”: é a multa de trânsito, que é, por sua vez, uma espécie de sanção istrativa.

Proíbe-se, também, que estabelecimentos comerciais como restaurantes e lanchonetes prestem seus serviços sem obedecer determinadas regras de limpeza e higiene. O estabelecimento que violar essa proibição está igualmente sujeito a “castigos”, como cassação de alvará de funcionamento e pagamento de multas – novamente, sanções istrativas.

Outra proibição é de causar um prejuízo material a alguém e não ressarcir: se, por uma manobra imprudente, um motorista de carro destrói o portão da casa de outra pessoa, é ilegal não pagar financeiramente pelos estragos causados. Caso não o faça – adivinhe! – o motorista descuidado está sujeito a ser obrigado judicialmente a uma indenização (que, nada mais é que o “castigo” – ou sanção – civil).

Todos estes exemplos (trafegar acima da velocidade permitida, não seguir regras da Vigilância Sanitária em estabelecimentos comerciais ou não ressarcir alguém prejudicado pelos danos causados) são condutas proibidas pelo Direito.

Mas nenhuma delas é crime.

Para que uma conduta proibida seja classificada como crime, deverá, além de ser ilícita e de ser praticada por alguém penalmente responsável (maior de dezoito anos e em plena saúde mental), estar prevista em uma lei penal, a qual deverá necessariamente determinar que o “castigo” pela sua prática seja uma pena (que, no Brasil, será de prisão).

Acho que não é demais ressaltar aqui que, embora as crianças e adolescentes e as pessoas em condições mentais incompatíveis com a responsabilização criminal não recebam uma pena, elas sofrerão consequências jurídicas pelas condutas que praticaram, mas falaremos disso em outra coluna oportunamente – fica prometido desde já!

Mas, voltando à questão das proibições, vamos aos exemplos das condutas proibidas que são consideradas crimes: é proibido ameaçar uma pessoa com uma arma para arrancar dela seus pertences. Quem violar esta proibição está sujeito a uma sanção penal – o “castigo” aqui vem na forma de uma pena de prisão que pode variar de 5 a 10 anos de reclusão. Também é proibido matar pessoas. E quem viola esta proibição será “castigado” também com pena de prisão, de 6 a 20 anos de reclusão.

As condutas classificadas como crime – e o critério para se saber o que o legislador escolheu para integrar esta categoria de condutas é justamente verificar se há ou não previsão de pena (que, via de regra, será de prisão) – , justamente por serem consideradas graves, geram não só uma punição penal, mas também uma punição cível: todo aquele que praticar um crime contra outra pessoa e com isso lhe causar um prejuízo (como no nosso exemplo do roubo), fica obrigado a indenizar a vítima.

A compreensão destes conceitos dos “castigos” – ou sanções – civis, istrativas e penais são indispensáveis para qualquer debate sobre descriminalização de condutas. Ao se defender que uma conduta deixe de ser crime não se está a argumentar que a tal conduta não deva sofrer qualquer regulamentação, ou que não possa ser proibida por outra área do Direito. O que se está a dizer, apenas, é que, se uma conduta não justifica um encarceramento, não deve punida pela via criminal, pois este tipo de sanção acarreta consequências individuais e sociais muitas vezes mais graves para a própria coletividade do que a conduta praticada pelo indivíduo punido.

Por isso, quem defende a descriminalização das drogas não defende sua liberação sem qualquer restrição, mas sim que estas restrições se deem por outras vias.

No mesmo sentido, quem defende a descriminalização do aborto não está brigando pela ampliação de sua utilização, mas sim que as pessoas envolvidas com uma interrupção voluntária da gravidez possam ser submetidas a outro tipo de tratamento pelo Estado que não o encarceramento.

Ou ainda quando se sustenta que não devem ser questão para o Direito Penal os furtos de coisas de valor insignificante, ou de alimentos e de medicamentos para quem esteja deles necessitando e não pode obtê-los de outra forma, não se está defendendo que os estabelecimentos comerciais abram suas portas e permitam a livre entrada de quem quiser levar seus produtos, mas sim que o ressarcimento do prejuízo do comerciante não se dará pelo encarceramento do furtador.

Quando uma conduta não é considerada crime, não significa que seja um direito.

Só significa que o Direito Penal é a menos eficaz e a mais violenta das soluções.

Maíra Cardoso Zapater

É Doutora em Direitos Humanos pela USP, graduada em Direito pela PUC (SP) e Ciências Sociais pela USP. É especialista em Direito Penal e Processual Penal pela Escola Superior do Ministério Público de São Paulo; professora, pesquisadora e autora do blog deunatv (https://deunatv.wordpress.com/).

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