Triste cochilo
Obras de arte representam história, estética, reflexão, criatividade. Revelam uma sociedade, um momento, um movimento, a natureza, um lugar. Nunca deveriam ser vistas no aspecto monetário porque diminuiria sua importância que transcende tal visão. Seria simplista e egoísta demais. A Declaração da ONU dos Direitos do Homem de 1948 consagra a ideia de que todo ser humano tem o direito de participar livremente da vida cultural da comunidade, de fruir das artes e de participar do progresso científico e de seus benefícios. Obras de arte são bens da humanidade e, na esteira da Convenção sobre a Proteção do Patrimônio Mundial, Cultural e Natural, aprovada pela UNESCO em 1972, tanto as do homem quanto os lugares notáveis são considerados patrimônio cultural, protegidos, portanto, pela Convenção, sendo dever do Estado tutelá-las, conservá-las e valorizá-las, com vistas a transmitir às futuras gerações e dar uma função na vida da coletividade.
Não é diferente do que consta na nossa Constituição Federal que prevê a responsabilidade dos Poderes da República pela proteção de bens de valor histórico, artístico e cultural, cabendo-lhes impedir qualquer descaracterização. Por tais razões, não se pode dar tratamento idêntico a outros bens apreendidos, sequestrados ou arrestados pela Justiça quando o objeto de persecução penal for uma obra de arte.
A notícia da venda de obras de arte, aí incluindo a que ocorreu no exterior da obra Hannibal de Jean-Michel Basquiat, anteriormente de posse da Justiça Federal brasileira, além de violar a Convenção e a legislação citadas, retira da população brasileira o direito legítimo de o a patrimônio da humanidade. Tal é a relevância que a Lei n.º 12.840/2013 estabelece ter os museus preferência quanto à destinação de bens apreendidos, o que determinaria a prévia audiência da União.
As instituições públicas brasileiras, aí incluindo o Poder Judiciário, deveriam atuar para atender apenas o interesse público, mais que premente e evidente nesta questão, porque diz com o todo, com a educação de todos, com o ganho cultural em sua plenitude, possível apenas mediante o físico.
Triste um país em que os poderes públicos dão de ombros à cultura, fonte de conhecimento e informação relevante: verdadeiro alimento intelectual. O Brasil possui artistas de envergadura e categoria, dentre outros, Vik Muniz, Gustavo Rosa, Takashi Fukushima, Romero Brito, Tarsila do Amaral, Aldhemir Martins, Cândido Portinari, Galileo Emmendabili, Alfredo Volpi, mais pela determinação em satisfazer talento nato, do que incentivo estatal. A defesa incondicional da cultura traduziria em apoio e crença efetivos no ser humano, na sua expressão, no reconhecimento indispensável aos benefícios que ela representa: reconciliação e generosidade.
É um total contrassenso, mormente pela função pedagógica e cultural de vital importância, deixar de materializar manifesto interesse público, que não pode apenas simbolicamente ser protegido. Não se ressarce ninguém com a venda de bens adquiridos ilicitamente. A satisfação daqueles que se consideram prejudicados somente poderia, salvo melhor juízo, ocorrer de outra forma porquanto à União cabe receber tais bens ilícitos e, no caso de obras de arte, destiná-las a instituições culturais no Brasil. Quando todas as pessoas são incluídas na reparação, vítimas são de alguma forma compensadas.
Quando o Estado abre mão daquilo que lhe cabe por dever legal e imposição natural, via subtração de inestimável conhecimento, retira alimento das sofridas pessoas do Brasil que vêm experimentando, em silêncio, uma paranoica abstenção cultural. Pena que nem tudo se divide e se diz.