Terceiro setor é fundamental no combate à violência sexual infantil, diz especialista
Direitos HumanosPara Lígia Vezzaro Caravieri, gerente técnica institucional da ONG Ficar de Bem, as OSCs podem oferecer acolhimento, escuta, orientação e educação nos casos de violência sexual infantil; “O terceiro setor atua onde o poder público, muitas vezes, não alcança com profundidade”, afirma

Por Lucas Neves
O último domingo(18/05) marcou o dia nacional de combate ao abuso e à exploração sexual infantil no país. Segundo o 18º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, divulgado no ano ado, o Brasil registrou 1 estupro de criança ou adolescente a cada 6 minutos em 2023. Durante este mês, a campanha Maio Laranja gera discussões e conscientiza sobre os altos índices de violência sexual infantil.
Em entrevista ao Observatório do Terceiro Setor (OTS), Lígia Vezzaro Caravieri, gerente técnica institucional da ONG Ficar de Bem, comenta o papel das Organizações da Sociedade Civil (OSCs) no combate a esse tipo de violência.
“O terceiro setor é fundamental nesse enfrentamento porque atua onde o poder público, muitas vezes, não alcança com profundidade, oferecendo acolhimento, escuta, orientação e educação”, afirma.
Nesse contexto, Lígia destaca o trabalho da ONG Ficar de Bem que, a partir dos princípios estabelecidos pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e o Sistema Único de Assistência Social (SUAS), trabalha na proteção de crianças e adolescentes com direitos violados.
“A atuação da Ficar de Bem se baseia em um modelo multidisciplinar, envolvendo psicólogos, assistentes sociais, advogados, pedagogos e educadores sociais”, diz a gerente, salientando o objetivo da organização em oferecer e integral às vítimas e a busca em contribuir para a superação dos traumas vivenciados.
Subnotificação dos casos de violência sexual infantil
No contexto de violência sexual infantil, Lígia alerta para a subnotificação dos casos como um dos principais desafios, afirmando que os dados do Anuário de Segurança Pública são apenas “a ponta do iceberg”. Afinal, muitos casos nunca chegam às autoridades, uma vez que as vítimas podem sentir medo, culpa ou vergonha ao denunciar, ou até estão “emocional e economicamente dependentes dos agressores”.
Lígia apresenta ações viáveis para combater esse problema chamado de ‘cultura do silêncio’. “É fundamental fortalecer os canais de denúncia, garantir sigilo e segurança às vítimas e qualificar a rede de atendimento. Somente assim conseguiremos tirar esses casos da invisibilidade e proteger verdadeiramente nossas crianças e adolescentes”.
Perfil dos agressores
O Anuário de Segurança Pública 2024 também alertou para o perfil dos agressores. Em 2023, a maioria das vítimas de violência sexual, de 0 a 13 anos, foram agredidas por familiares (64%) ou conhecidos (22,4%).
Para Lígia, esse fator torna o combate às violências muito mais complexo e até inível. Além de envolver questões afetivas e econômicas, a criança pode “não compreender que está sendo vítima, ou, quando entende, teme denunciar por medo das consequências para a família”, afirma.
Nesse cenário, a gerente técnica institucional da ONG Ficar de Bem recomenda que haja investimento em educação preventiva e na formação de uma rede de proteção ativa, incluindo escolas, serviços de saúde, organizações sociais e toda a comunidade.
“A escuta qualificada, a construção de espaços seguros e a valorização da denúncia são caminhos fundamentais. Precisamos falar abertamente sobre o tema, inclusive com as próprias crianças, respeitando suas fases de desenvolvimento” – Lígia Vezzaro Caravieri
A seguir, confira a entrevista completa de Lígia Vezzaro Caravieri, gerente técnica institucional da ONG Ficar de Bem, ao Observatório do Terceiro Setor.
Entrevista completa – Lígia Vezzaro Caravieri
De qual forma o terceiro setor pode colaborar com o combate à violência sexual infantil? Conte sobre a atuação da ONG Ficar de Bem nesse aspecto.
O terceiro setor é fundamental nesse enfrentamento porque atua onde o poder público muitas vezes não alcança com profundidade, oferecendo acolhimento, escuta, orientação e educação. A ONG Ficar de Bem atua há mais de três décadas na proteção integral de crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade e na defesa de seus direitos, realizando campanhas de conscientização, além de oferecer assistência psicossocial gratuita e apoio especializado às vítimas e suas famílias. A atuação da Ficar de Bem se baseia em um modelo multidisciplinar, envolvendo psicólogos, assistentes sociais, advogados, pedagogos e educadores sociais. O objetivo é oferecer e integral às vítimas, promovendo a reconstrução de vínculos familiares saudáveis e contribuindo para a superação dos traumas vivenciados.
Importante destacar que a ONG é uma das poucas instituições que atende também o agressor, justamente, com o objetivo de ‘quebrar’ este ciclo da violência. A ONG recebe casos encaminhados do Creas (Centro de Referência Especializado de Assistência Social) e realiza atendimento com toda família, inclusive, identificando possíveis situações de risco por meio de grupos de orientações, rodas de conversa, oficinas, atendimentos individuais e familiares. A instituição também realiza ações preventivas na comunidade e capacitação de profissionais visando o enfrentamento à violência e a proteção de crianças e adolescentes.
Em muitos casos, as crianças e adolescentes são agredidas sexualmente por amigos ou parentes. Isso dificulta o trabalho do poder público e do terceiro setor no combate à violência sexual? Nesse cenário, qual caminho pode ajudar a combater esse tipo de violência?
Infelizmente, na maior parte dos casos de violência sexual contra crianças e adolescentes acontece dentro de casa ou no círculo de confiança da vítima. Essa realidade torna o combate muito mais complexo, digamos que inível, porque envolve vínculos afetivos, medo, vergonha e, muitas vezes, dependência econômica. A criança ou adolescente pode não compreender que está sendo vítima, ou, quando entende, teme denunciar por medo das consequências para a família.
Para enfrentar isso, é essencial investir em educação preventiva e na formação de uma rede de proteção ativa, que inclua escolas, serviços de saúde, organizações sociais e a comunidade em geral. A escuta qualificada, a construção de espaços seguros e a valorização da denúncia são caminhos fundamentais. Precisamos falar abertamente sobre o tema, inclusive com as próprias crianças, respeitando suas fases de desenvolvimento.
Quais são os principais sinais que uma criança abusada apresenta e como os responsáveis podem identificá-lo?
Os sinais podem ser físicos, comportamentais e emocionais, e variam de acordo com a idade da criança e a frequência da violência. Alguns indícios comuns incluem mudanças bruscas de comportamento, retraimento excessivo ou agressividade, medo de ficar sozinha com determinada pessoa, brincadeiras ou falas com conotação sexual incompatível com a idade, problemas no sono, queda de rendimento escolar e até problemas físicos como dores ou infecções.
O mais importante é que os adultos – seja da família, convívio e até nas escolas – estejam atentos e disponíveis para ouvir sem julgamento. O vínculo de confiança entre a criança e o adulto é essencial para que ela se sinta segura para falar.
Violência sexual é um assunto delicado para tratar com jovens, muitas vezes os pais não falam a respeito por medo, insegurança ou desconhecimento do tema. Como abordar educação sexual com as crianças para alertá-las sobre a violência sexual?
Educação sexual não é sobre erotização precoce — é sobre autoproteção, consciência do corpo, respeito e limites. Desde cedo, é possível conversar com as crianças de forma adequada à idade, ensinando, por exemplo, os nomes corretos das partes do corpo, explicando que algumas partes são íntimas e que ninguém deve tocá-las sem consentimento.
É importante também ensinar que segredos que causam medo ou tristeza devem ser compartilhados com um adulto de confiança. Quando essa conversa acontece de forma natural e contínua, a criança se fortalece para identificar situações de risco e buscar ajuda.
Referente aos dados do Anuário de Segurança Pública, você comenta que eles são somente “a ponta do iceberg”. O que dificulta que mais casos sejam relatados?
A subnotificação é um dos maiores desafios no enfrentamento da violência sexual. Muitos casos nunca chegam às autoridades porque as vítimas sentem medo, culpa ou vergonha, ou por estarem emocional e economicamente dependentes dos agressores. Então, essa ‘cultura do silêncio’, dificulta e muito o o aos casos de violência sexual. Além disso, há falta de preparo de alguns profissionais para identificar sinais e acolher denúncias de forma mais humanizada.
Voltando à cultura do silêncio, muitas famílias preferem silenciar a expor a situação, como vemos em diversos casos. Por isso, é fundamental fortalecer os canais de denúncia, garantir sigilo e segurança às vítimas e qualificar a rede de atendimento. Somente assim conseguiremos tirar esses casos da invisibilidade e proteger verdadeiramente nossas crianças e adolescentes.