Super mulheres

Trilha sonora para ler este texto: Ótima, Flaira Ferro
E comecei o ano super feliz por estar com meus textos em dia e não ter nenhum atraso. Daí que acontece um turbilhão de coisas e eu esqueço de escrever a coluna de fevereiro. Como fico eu? Com uma culpa do tamanho do mundo achando que sou a pessoa mais relapsa e irresponsável da humanidade.
Se você é mulher e está lendo isso, vai entender. Culpa é algo que toda mulher carrega consigo. Porque ser mulher é isso: é maravilhoso, mas ao mesmo tempo a gente tem que desconstruir um monte de coisa que colocaram na nossa cabeça. Todo dia é um hábito machista ou opressor que a gente descobre dentro de nós mesmas, e lutamos pra arrancá-lo de dentro da gente e para sermos mais compreensivas com a gente e com as outras. É a tal da sororidade que todo mundo fala. Mas cada vez que percebo isso, novamente aparece o sentimento de culpa por ter resolvido isso e entro num ciclo sem fim da culpa eterna. Desconstruir-se e se reconstruir é um exercício cansativo e, por vezes, só almejamos ser seres humanos, mesmo cheios de defeitos, e não pensar em mais nada.
Dou um chute neste sentimento de culpa e me sento no computador decidida a escrever exatamente sobre nós: mulheres. Dia 8 de março foi dia internacional da mulher e acho que vai ser bom escrever sobre isso neste mês. Ainda mais porque é exatamente no dia 8 de março que a gente escuta as frases e os “elogios” mais desnecessários. Já não basta sermos assediadas no ônibus, no trabalho, na família, ganharmos menos, termos menos direitos, andarmos com medo nas ruas, a gente ainda tem que escutar um monte de bobagem em um dia que deveria ser celebrado.
Geralmente, meus textos seguem a seguinte estrutura: busco ser instrutiva e apresentar algumas informações sobre exercícios de direitos sob uma perspectiva otimista. Mas, em que pese eu reconhecer que avançamos bastante, confesso que tenho um pouco de dificuldade de escrever sobre isso em tom de otimismo. E os dados não são os mais animadores.
A Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, de 1979, é a menos aceita em todos os países do mundo. Foi ratificada pelo Brasil em 1984, mas o país apresentou reservas em relação aos direitos à liberdade de movimento, escolha de domicílio e casamento. Estas reservas só foram retiradas no ano de 1994.
No cenário nacional, tenho a sensação de darmos dois os para frente e um para trás. E por vezes, sinto que andamos apenas um para frente e em seguida três os para trás. O órgão nacional responsável pelo planejamento nacional das políticas públicas voltadas às mulheres foi instituído apenas em 1997, no então governo de Fernando Henrique Cardoso. A pasta responsável pela elaboração das políticas voltadas às mulheres pertencia à Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República e gozava de status de ministério. Em 2003, no governo de Luiz Inácio Lula da Silva, foi criada a Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidência da República. Uma nova mudança aconteceu em 2015, durante o segundo mandato da presidenta Dilma Rousseff, e a secretaria foi unificada com a Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial formando o Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos. Este ministério não teve vida longa, pois com a posse de Michel Temer em 2016, houve uma nova reformulação ando a ser Ministério dos Direitos Humanos. Com o atual governo de Jair Bolsonaro, a pasta ou por nova mudança ando a ser Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos.
O que parece ser apenas uma mudança de nomenclatura é, na verdade, uma profunda alteração nas prioridades da agenda governamental. Aliás, é a falta de prioridades do governo que faz a instituição mudar tanto sem ter clareza para onde estamos caminhando. Isso se reflete no fato de não conseguirmos avançar no debate político para que nossos direitos sejam equiparados ou minimamente respeitados. Não avançamos na conquista dos nossos direitos reprodutivos e sexuais. Falar de aborto seguro é tabu. Falar de educação sexual é visto como tema polêmico. O Estado não oferece creches suficientes para as crianças, e as mulheres se veem obrigadas a deixar o trabalho para se dedicar à família. E se elas permanecem nos postos de trabalho, encaram jornada dupla, tripla, quádrupla, quando não são punidas indiretamente no ambiente profissional por aceitarem a maternidade. Aliás, maternidade e vida profissional parecem ser sempre uma equação impossível de ser equilibrada.
Os casos de feminicídio têm aumentado nos últimos anos, sem falar nas outras formas de violência física e sexual que todas sofrem todos os dias. Se você é mulher e está lendo isso, vai acabar se lembrando de um episódio não muito feliz de já ter ado, seja no transporte público, seja em algum relacionamento, seja no trabalho ou em qualquer âmbito da vida em sociedade. E se você é homem, com certeza já deve ter escutado alguma mulher do seu convívio e círculo social ou familiar mencionar sobre algum fato envolvendo preconceito ou violação em relação a um de seus direitos.
E as violações ficam ainda mais latentes se sobrepmos gênero, etnia e classe social. É o que chamamos de visão interseccional. Não há como falar de violações trabalhando em uma única perspectiva. As violações são diferentes quando falamos de uma mulher rica e uma mulher pobre. Assim se falarmos dos desafios enfrentados por uma mulher branca e uma mulher negra, uma mulher cis e uma trans, uma mulher mais jovem e uma mais velha. Mas essas diferenças não podem ser objeto de rivalidades e disputas. Como já disse Caetano, “cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é”. Cada uma sabe de seu histórico, de suas dores, de suas fragilidades e de suas forças. Por vezes, já fui em debates que parece uma disputa de quem sofre mais ou quem tem mais direitos violados. Fato é que nenhum direito, por menor que possa parecer aos nossos olhos, pode ser desconsiderado. Se não é importante para você, não significa que seja desimportante para outro. Por exemplo, eu não tenho nenhuma vontade de ser mãe, a equação maternidade e trabalho talvez nunca será um ponto de preocupação para mim, mas nem por isso deixo de me solidarizar com as mulheres ao meu redor que sofrem com este dilema. Assim como o aborto é para mim um tema de extrema relevância, espero que outras mulheres entendam que este é um direito importante e ponto sensível para mim. Desejo viver em um país onde eu possa ter a escolha de não continuar uma gravidez, se assim eu quiser, e que este direito seja estendido para todas as outras mulheres.
Mas depois de todo este cenário desesperador, eu não consigo finalizar um artigo sem apontar uma luz no final do túnel. São tempos muito difíceis para escrevermos apenas sobre nossas lamentações e angústias. Nós, mulheres, merecemos ler textos que nos deem algum sopro de esperança. Não é à toa que minha coluna sempre recorre a qualquer expressão artística para temperar minhas frases com algum otimismo. E não será diferente neste mês.
Eu sou uma grande fã de Dustin Hoffman. E como fã doentia, há algumas semanas, resolvi buscar toda a filmografia dele para maratonar e me deliciar com as atuações dele. Acabei começando com Tootsie, de 1982. Tootsie conta a história de um ator (Michael Dorsey, interpretado por Hoffman) que ama a arte, mas não consegue um papel sequer. Por estar desempregado por um tempo considerável, o protagonista decide se vestir de mulher e se candidatar para o papel de uma personagem feminina de uma novela de grande sucesso na televisão norte-americana. O filme é uma comédia cheia de situações inusitadas que só um homem vestido de mulher poderia enfrentar, mas o mais interessante é que o personagem principal a a compreender o que as atrizes enfrentam no set de filmagem. Michael enfrenta situações de assédio e objetificação. Indignado com este tratamento, Michael adota uma postura de mulher empoderada incentivando outras mulheres a seguirem as mesmas táticas para deixarem de ser assediadas e isso o transforma na nova “namoradinha da América”. Ocorre que, mesmo ando por todas estas situações vexatórias, ele mantém uma relação abusiva de “pseudo namoro” com uma atriz, que é sua meio amiga e meio namorada, enquanto almeja conquistar outra atriz de seu set de filmagem. Sem maquiagem e vestido, Michael faz a mesmas ações que repudia em outro homem. É interessante notar que o filme não se atentou a esse fato. O protagonista só é feminista quando vestido de mulher. Ocorre que, para o ano de 1982, este filme foi revolucionário e até proibido em algumas salas de cinema por mostrar a história de um homem que se veste de mulher. Muitos pais consideraram o filme perverso porque poderia incentivar os filhos homens a quererem se vestir como mulher e, com isso, terem sua masculinidade ferida. O que eu quero dizer é que possivelmente este filme, que em 1982 foi apontado como muito à frente de seu tempo, hoje poderia ser massacrado pela crítica se fôssemos analisá-lo sob a perspectiva de 2020.
O que pretendo apontar trazendo o exemplo de Tootsie é que, mesmo em um cenário desolador, acredito que temos avançado bastante no tocante ao debate sobre gênero e, ao menos, trouxemos visibilidade para estas questões. Talvez seja por isso que, por vezes, temos a impressão de termos retrocedido. Na verdade, trouxemos à tona situações que antes ficavam escondidas. Realmente acredito que não aumentaram os casos de assédio nos ambientes de trabalho nos últimos anos, o que ocorreu é que mais mulheres se sentem confiantes em denunciar. E tanto temos falado sobre o tema que podemos notar uma mudança no roteiro de filmes, peças teatrais e até comerciais de televisão. Conquistamos o mesmo espaço que o ocupado pelos homens? Não. Mas pelo menos temos apontado o dedo quando não estamos representadas em algum lugar. Continuaremos falando e denunciando, até mesmo os pequenos hábitos do dia a dia.
Para trazer mais elementos ao nosso diálogo, aponto um outro filme interessante sobre desigualdade de gênero. É um filme francês chamado Não sou um homem fácil, de 2018 (Je ne suis pas um homme facile, no título original). Por também ser uma comédia, o filme aponta as pequenas sutilezas entre ser um homem e uma mulher na vida real. É a história de um típico homem clichê machista que um belo dia, após tomar uma pancada na cabeça, acorda em um mundo onde os papéis de homens e mulheres se inverteram. Assédio no trabalho, roupas que estimulam o fetiche do sexo oposto, depilação e uso de maquiagem am a ser parte da sua rotina, apontando o quanto as mulheres são oprimidas no dia a dia. A meu ver, o filme aponta alguns aspectos interessantes que nos fazem refletir como sociedade, mas acaba caindo em alguns clichês e se perde ao tentar fazer com que os dois personagens principais se envolvam em um relacionamento amoroso. Ademais, a história se baseia em personagens sem muita complexidade, como se o mundo fosse dividido entre aqueles que são machistas da pior espécie sem qualquer escrúpulo e aqueles que são vítimas sem qualquer capacidade de defesa. A sociedade e as subjetividades são muito mais complexas do que o filme apresenta.
Por outro lado, existe um outro filme, também francês, que trata sobre a questão de gênero sem cair em estereótipos e clichês chamado Enquanto o sol não vem (Parlez moi de la pluie, no título original), do ano de 2008. O filme trata de várias histórias que se entrelaçam e se correlacionam. Apresenta personagens que representam os medos, desafios e privilégios de cada um. Em resumo, é a história de uma mulher que acabou de ingressar na vida política da França (Agathe Villanova), pelo sistema de quotas eleitorais, e que retorna à cidade natal em razão do falecimento da mãe. Aproveitando a estadia de Agathe, o filho da empregada da família (Karim) pede para fazer um documentário sobre a vida dela, mas ele não tem nenhuma empatia pela história dela. Ele acabou de ar por um recente divórcio e perdeu a guarda de seu filho. Para Karim, a igualdade de gênero, motivo de luta de muitas mulheres, representa a opressão que ele sofre em sua vida. Este filme mistura questões de gênero, privilégios sociais, além de temperar com um ponto delicado na Europa: os imigrantes e o tratamento dispensado a eles. Todos os preconceitos de todos os personagens são apresentados de forma sutil, assim como é na vida real.
O que eu mais gosto deste filme é que ele aponta que nenhum de nós está isento de atitudes e pensamentos preconceituosos. E mais do que lutarmos para que políticas públicas sejam estruturadas para termos nossos direitos garantidos, precisamos rever nossas atitudes cotidianas. Por vezes, muitos homens, que eu vejo apoiando as mulheres nas manifestações pelos direitos feministas, são os mesmos homens que me questionam sobre a regra de impedimento quando eu digo que gosto de futebol. Assim como também mulheres, muitas até que pesquisam e escrevem sobre feminismo, são as mesmas mulheres que me dizem que eu posso colocar mais comida no prato pelo fato de eu ser magra. O que eu coloco na boca – seja comestível ou não – é um problema que só diz respeito a mim e pouco importa quanto estou pesando. Também somos nós mulheres que nos oprimimos constantemente quando cobramos umas das outras para sermos mais militantes. Daí que a gente percebe que todo mundo está no momento de desconstrução e reconstrução. Às vezes cansa problematizar sobre tudo e só queremos falar sobre futilidades, ademais, ficar lembrando e remoendo o que amos diariamente machuca demais. O que pretendo apontar é que também são as nossas pequenas atitudes que contribuem para a perpetuação de uma atmosfera opressora para todas nós. Para mim, não é que devemos deixar de falar sobre o tema, mas como falamos e como cobramos das nossas companheiras. Lutar pela nossa igualdade é também lutar para termos a escolha pelo que queremos falar e fazer das nossas próprias vidas.
Meu sonho é que um dia a gente não precise mais falar sobre isso, nem problematizar. Desejo que as condições de vida sejam tão igualitárias entre homens e mulheres que eu poderei ceder tempo e espaço para falar de quadrinhos, de política, de casamento, de economia, de motor de carro, de idioma, de futebol, de artes, de filhos, de moda, de seriados, de música, de cinema, de televisão, de atividade física, de fofoca, de preguiça, de orgasmo, de receita de bolo, de viagem, de astrofísica, de animais, de sexo, de lista de supermercado, de futilidades sem alguém me interrompendo perguntando se o que estou a falar é assunto de mulher.
*A opinião dos colunistas não reflete, necessariamente, a opinião do Observatório do Terceiro Setor.