Precisamos falar sobre violência sexual infantil no Brasil

Por que precisamos falar sobre violência sexual infantil
Os dados que temos sobre violência sexual contra crianças e adolescentes no Brasil são alarmantes (ainda que subnotificados). Apontam um número de vítimas que justificaria um empenho gigante da sociedade para solução do problema. Mas isso não acontece. Por que não falamos de violência sexual infantil como deveríamos? O Instituto Liberta trabalha há cinco anos para tornar esse imenso problema visível, nossa missão é fazer o Brasil enxergar e falar sobre esse crime. Dar visibilidade, gerar desconforto social, são fundamentais para que se construam políticas públicas eficientes para o enfrentamento da questão. Esse texto é uma proposta de reflexão. Então, vamos começar do início.
O que é violência sexual contra crianças e adolescentes?
A violência sexual infanto-juvenil é uma violação dos direitos sexuais, isto é, abusar ou explorar do corpo e da sexualidade de crianças e adolescentes.
Quando falamos sobre abuso sexual estamos nos referindo a uma violação praticada por uma pessoa com o intuito de satisfazer-se sexualmente, envolvendo não só a penetração vaginal ou anal, mas qualquer outro ato libidinoso, como exposição dos genitais, sexo oral, entre outros. A criança ou adolescente menor de 14 anos, nessa situação, a por uma experiência que está além da sua capacidade de consentir ou entender o que está acontecendo, por isso nossa legislação classifica tais atos como estupro de vulnerável (art. 217-A do Código Penal).
Trata-se de uma violência, na maioria dos casos, praticada por alguém da família ou por alguém muito próximo da vítima, o que seguramente explica o silêncio em torno deste crime. Contrariamente ao que está no imaginário das pessoas, não acontece só nas famílias de alta vulnerabilidade social, mas em todas as classes sociais.
Já a exploração sexual ocorre quando um adulto procura um adolescente entre 14 e 18 anos para se satisfazer sexualmente e, em troca, oferece dinheiro, bens de consumo, viagens, etc. É uma forma de mercantilizar a sexualidade desse adolescente. Também ocorre exploração sexual de crianças, mas, como dissemos, quando ocorre qualquer relação sexual entre um adulto e uma criança ou adolescente menor de 14 anos, é estupro, crime cuja pena é mais alta do que a exploração, que está prevista no artigo 218-B do Código Penal.
Por se tratar de relação sexual que possui uma troca, as vítimas são, em sua imensa maioria, de grande vulnerabilidade social, já os exploradores pertencem a todas as classes sociais.
A violência sexual contra crianças e adolescentes em números
Segundo os dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2021, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), no ano de 2020 foram registrados – registros provenientes dos boletins de ocorrência lavrados pelas Polícias Civis – 60.926 casos de violência sexual, sendo desses 16.047 de estupro e 44.879 casos de estupros de vulnerável.
Analisando o quadro abaixo verificamos que 60,6% das vítimas são crianças ou adolescentes de até 13 anos, sendo que 11,3% tinham entre 0 e 4 anos, 20,5% entre 5 e 9 anos e 28,9% entre 10 e 13 anos. Adolescentes entre 14 a 17 anos configuram 15% dos crimes. Esta é uma realidade que se apresenta desde o Anuário de 2019, primeira vez que o estupro de vulnerável apareceu separado do estupro em geral, quando então pudemos comprovar a preponderância desta violência contra crianças e adolescentes.
Outro dado muito importante do Anuário é que 85,2% dos autores eram conhecidos da vítima, o que reforça a tese da violência intrafamiliar. E é esta característica de violência intrafamiliar que explica o quadro que veremos a seguir, o qual revela que os registros no começo do ano, estavam estáveis em relação aos outros anos e, em março e abril, tiveram uma redução de 12,6% e 21,7% respectivamente. Ora, estes meses foram os de maior confinamento em razão do corona vírus, quando essas crianças provavelmente aram mais tempo com os seus agressores, dentro de casa, tornando, assim, a denúncia ainda mais difícil.
Também estamos falando de um crime que tem um forte recorte de gênero, uma vez que 86,9% das vítimas são do sexo feminino. Vivemos em uma sociedade patriarcal, em que as mulheres são vistas como objetos sexuais. Todavia, não podemos deixar de falar dos meninos vítimas de violência sexual. O Fórum aponta que entre as vítimas do sexo masculino, a grande maioria tem até 9 anos. Estudos recentes vêm apontando que o silêncio no caso dos meninos pode ser ainda maior, uma vez que vivemos em um país machista e um menino violentado pode ter a sua sexualidade questionada a partir daí e, caso a abusadora seja uma mulher, pode ser considerado “sortudo” por ter sido iniciado sexualmente de forma precoce.
Enfim, nosso intuito é provocar as pessoas a refletirem e gerar consciência para que violências sexuais de qualquer ordem contra crianças e adolescentes sejam denunciadas. Só assim podemos frear esse crime tão silenciado e naturalizado. O silêncio gera impunidade e só protege o abusador, nunca a vítima. Denúncias também são importantes para gerar dados que escancarem a prática desta violência no Brasil e provoquem o Poder Público para construção de políticas preventivas e repressivas mais eficazes do que a poucas hoje existentes.
Insistimos, precisamos falar sobre violência sexual contra crianças e adolescentes.
Sobre as autoras:
Luciana Temer é advogada, professora da Faculdade de Direito da PUC-SP e presidente do Instituto Liberta.
Renata Greco é estudante de psicanálise, bacharel em istração Pública e Analista de Projetos do Instituto Liberta.