O que fazer? O porão do Brasil e da família

Uma parte dos brasileiros está acompanhando, analisando e refletindo sobre a atual conjuntura que atravessamos em nível mundial e nacional. Preocupados, ansiosos, desanimados e esperançosos. Todos de uma certa maneira atordoados com um cenário incerto, de muitas mortes e sofrimento que atingem a grande a maioria das pessoas. Especificamente no Brasil, o sofrimento é ainda maior quando assistimos em plena quarentena a crueldade e descaso do atual “desgoverno” de Jair Bolsonaro com o povo brasileiro.
Por outro lado, tenho observado no meu cotidiano, conversando com algumas pessoas (amigos, alunos, ex alunos), que existe um outro sofrimento: a dor de conviver com uma família desprovida de qualquer valor moral. Dessa forma, as pessoas am por sofrimentos duplos: tanto da realidade dolorosa e nefasta que o Brasil atravessa como na relação íntima com seus familiares, que continuam validar e apoiar com toda força o que há de mais desprezível no ser humano. Penso que não é um fenômeno novo que está aflorando nessas pessoas, mas algo que sempre existiu e que só agora conseguem expressar sem a mínima timidez.
É nesse redemoinho que muitos estão sofrendo duplamente, como uma amiga desabafou. Racismo, preconceitos, obscurantismo, negacionismo, ignorância, raiva, ódio, desprezo pela dor humana, homofobia, criminalização dos pobres, assassinatos, fazem parte do universo macro de uma parte da sociedade brasileira, como também de muitas relações familiares.
O que fazer? Muitos amigos choram, tem insônia, crises de ansiedade. Outros refletem e reconhecem que estão neste momento em uma condição de encarceramento duplo, trancados em dois “porões”, mas que ainda vislumbram os “ares floridos do campo”.
Tudo isso, me remete a um livro que li recentemente, no qual me deliciei e me emocionei a cada minuto, a cada página. O que fazer? do grande Nikolai Tchernychevskii, um dos mais importantes romances russos do século XIX. Inspirou toda uma juventude revolucionária. O autor aborda questões fundamentais das transformações das relações humanas, os direitos iguais de homens e mulheres, a libertação feminina, entre outros. Porém, o autor conversa com os leitores sutilmente por meio de alguns personagens, especialmente uma mulher chamada “Vera Pavlovna” (“Verinha”), que sofre durante muito tempo no seio familiar (definido como o “porão”) na relação com sua mãe, mas que um dia se liberta.
É nessa atmosfera que o autor, por meio dos seus personagens, fala de todos os vícios e virtudes humanas e nos faz refletir sobre o que somos, o mundo que vivemos e a construção de um novo mundo para todos.
Lendo esse grande romance, pensei no que muitos de nós estamos vivendo nos últimos anos e na atual conjuntura. Talvez, sem exagero, seja o mesmo sentimento que “Verinha” era acometida quando tinha que conviver com a maldade de sua mãe. Sentia-se em um porão escuro e presa. Sonhava com a sua liberdade a todos os momentos.
Hoje no Brasil, muitos de nós nos sentimentos como estivéssemos trancados no porão, com a diferença que são dois porões. Muitas vezes desanimados, e outras vezes buscando alternativas para sair do porão e voltar a respirar.
O que fazer? Minhas queridas amigas e amigos… Fico com um dos trechos do livro de Nikolai Tchernychevskii. “(…) Algum dia as pessoas não precisarão ser más. Mas por enquanto não é assim. Os bons não conseguem ficar em pé por suas próprias forças. Os maus são fortes e astutos. Mas, veja Verinha: há diferentes tipos de malvados. Alguns são necessários para que no mundo as coisas fiquem piores; outros para que fiquem melhores. E todos estão atrás de seus interesses (…) Eles não querem me ajudar, mas dão espaço para que as pessoas se tornem seres humanos completos. Fornecem meios para que a humanidade floresça (…) Sim, Verinha, não posso ar sem esses malvados que se colocam contra outros malvados. Os meus malvados são malvados, mas, sob suas asas, cresce o bem (…) quando os bons forem fortes, não haverá necessidade dos maus. Então os maus verão que não deveriam ser maus. E aqueles malvados humanos se tornarão bons. Eles sabem que o bem é melhor que o mal. Vão gostar do bem quando puderem gostar dele sem isso ser nocivo a eles (…) Não é tão difícil. Saiam para luz do dia, onde a vida é boa”.
*A opinião dos colunistas não reflete, necessariamente, a opinião do Observatório do Terceiro Setor.