O Gigante dormiu em SP?

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Em meados de 2013, nas chamadas jornadas de junho, me recordo de um coro entoado nacionalmente, e de maneira muito insuflada, que dizia “o gigante acordou!”. Este “Gigante” se pretendia ser o povo brasileiro, que acordava, então, para as injustiças do país. No entanto, à época, aqueles e aquelas que estavam, e sempre estiveram, histórica e diuturnamente na luta contra as opressões de classe, construindo a resistência junto aos movimentos sociais e fazendo frente nas trincheiras contra um Estado truculento, logo trataram de retrucar ao tal Gigante: “nós nunca dormimos!”.

Em meio às jornadas de vultosas mobilizações, lembro que alguns analistas previam que a pauta legítima e popular da tarifa zero para o transporte público e contra os R$ 0,20 centavos – muito bem construída e articulada pelo Movimento e Livre (MPL), diga-se de agem –, assim como seus atos, manifestações, mobilizações e estratégias, estavam sendo cooptadas. Estes analistas estavam certos. Mas as mobilizações do MPL estavam sendo cooptadas por quem? Hoje sabemos. Cooptadas pelo tal Gigante.

A metáfora de que um gigante havia acordado era a caricatura de uma classe média metida à elite e apadrinhada pelos privilégios de classe do projeto social-desenvolvimentista dos governos Lula e Dilma Rousseff, que resolveu tragar as ruas para suas pautas genéricas, difusas e, porque não, contraditórias, como por exemplo, por “mais educação”, “mais saúde” e etc.

Ao longo do ano de 2014, com o advento da Copa do Mundo e das eleições gerais, aquele tal Gigante foi ganhando forma, nome e endereço. Ou melhor, foi mostrando a qual classe social pertencia.

O Gigante, pretensamente acordado em 2013, entrou no ano de 2014 com os dois pés na disputa pela narrativa da crítica aos grandes eventos da Copa do Mundo. Enquanto os movimentos populares denunciavam desde longe a violência pela qual o Estado brasileiro construiu as condições para serem realizados no Brasil os megaeventos da Copa, articulando as atrocidades cometidas pelo Estado neste processo à disputa política do poder pelo grande capital, o tal Gigante abraçou a bandeira da “educação padrão FIFA”, “saúde padrão FIFA” e mais umas tantas outras coisas “padrão FIFA” – mantendo a coerência com o ano de 2013, no qual as pautas do famigerado Gigante eram genéricas e sem lastro social. Aliás, “padrão FIFA” foi o coro entoado pelo Gigante xingando e insultando em coro, pateticamente, a chefe de Estado, Dilma Rousseff, no estádio durante o jogo de abertura da Copa do Mundo no dia 12 de junho.

Logo após a Copa, caindo direto nas eleições gerais de 2014, o nosso agora conhecido Gigante veio a público de maneira tímida, fazendo críticas ao governo em praticamente todas as áreas e pedindo mudanças na política nacional. Quais mudanças eram estas não se sabia. Mas se podia identificar que não eram mudanças estruturais e populares, mas sim mudanças moralistas, elitistas e conjunturais.
Após a vitória de Dilma Rousseff, em outubro de 2014, o articulado Gigante pareceu ter encontrado seu prumo principal.

No primeiro semestre de 2015 o querido Gigante, que acordou no ano de 2013, e se fortaleceu ao longo de 2014, ganhou melhor forma e conteúdo. Em resumo, mostrou a que veio. Aquelas pautas genéricas e os chavões “padrão FIFA” ficaram para trás, e no lugar disso tudo um discurso ríspido e truculento contra a corrupção e por mais eficiência do Estado tomou o coração do tal Gigante. Junto com isso, como não poderia ser diferente, o Gigante parece ter lido os blogs políticos de pseudointelectuais e jornalistas de Higienópolis, e abocanhou também o discurso anticomunista e pelo impeachment.

Assim, nosso Gigante agora estava mais ideologicamente preparado, com uma estratégia clara e definida de atuação, e assim crescia em todo o país. Tendo a bandeira do impeachment de Dilma Rousseff como eixo central o Gigante ou a frequentar aos domingos a Av. Paulista, e outras tantas importantes avenidas de todo o país.

O Gigante parecia determinado. Avançou bem em suas pautas com o apoio das empresas de comunicação de massa e surfou na indignação daqueles que afirmam que “nossa bandeira jamais será vermelha”. Em suma, lá estava o tal Gigante recém-acordado nas ruas pautando a política nacional.

Um dos principais feitos midiáticos do querido Gigante no primeiro semestre de 2015, além dos eios na Av. Paulista, e entre as selfies com a Polícia Militar, foi a orquestração de alguns particulares ”aços” nacionais. O barulho das as que se agitavam nas varandas gourmets entoava o grito de esperança por um país “melhor”. Lá estava, então, o barulhento Gigante a estremecer suas as de indignação!

Quando questionado o determinado Gigante era categórico, e explicava o porquê de tamanha algazarra cívica pelo impeachment: é pelo “futuro” da nação, é pelo patriotismo, é por um país com mais saúde, mais educação, mais segurança, menos impostos, e mais credibilidade na política! Bradava.

Havia quem dissesse que este Gigante em movimento significava uma “mudança cultural” no Brasil, ou melhor, significava um povo que saía de sua ividade histórica para inaugurar sua atividade política contra a situação que vive a nação. Balela!

Todavia, no segundo semestre de 2015, especialmente na província de São Paulo, o Gigante parece ter cochilado.

Apartidário, ético e detentor de valores patrióticos, o Gigante parece não tolerar a bandeira vermelha, mas simpatiza com o fato de ela ser azul. Na província de São Paulo as atrocidades políticas não param de vir à tona. Não cessam escândalos em todas as áreas da istração pública estadual. E o Gigante? ZZzzZZzzZZzzz…

Acabou a água. E isso não foi efeito do aquecimento global, ou por conta do El Niño. Foi má gestão mesmo – e um pouco de má-fé. As regiões periféricas da cidade de São Paulo, da região metropolitana e de outras cidades da província ficaram totalmente sem água, enquanto a empresa responsável pelo abastecimento lucrava bilhões de reais e as áreas nobres das cidades nem sentiam o efeito da falta de água. E o Gigante não se preocupou. Talvez ele não tenha sentido a crise de abastecimento em sua casa.

O braço armado do chefe da província de São Paulo assassinou, estuprou, torturou, mentiu e humilhou a juventude preta, pobre e periférica sistematicamente em rede nacional. Mas o Gigante “deu de ombros”, e não soou nem uma nota de frigideira nas varandas gourmets. Parece que o tal Gigante não mora na periferia.

A Santa Casa de São Paulo, importante serviço de saúde da província, entrou em colapso por má gestão, roubos e outras falcatruas. A saúde, tema tão caro ao tal Gigante, corre ladeira abaixo na província de São Paulo. Porém, o amigo Gigante não se preocupou. Não ocupou nem 1 m² da Av. Paulista, o que nos leva a crer que o Gigante deve utilizar um belo plano de saúde privado.

São Paulo avança com o transporte público a os de cágado. O que foi anunciado pelo chefe da província não se conclui nunca, e nem 15% do que foi prometido entre trens, metrôs e monotrilhos foi entregue à população. E o Gigante? Parece que ele anda de carro e não liga muito para o transporte público.

No bojo dos inexplicáveis fatos ocorridos em tal província um deles deveria ter chamado à atenção do tal Gigante. Tanto no caso dos transportes, como no caso do abastecimento de água, não param de aparecer indícios de que houve corrupção nas licitações e nas parcerias público-privadas. Mas o Gigante na província parece ser mais parcimonioso, e preferiu esperar “concluírem as investigações” para se manifestar.

Outro ponto que parecia ser seu carro chefe, a credibilidade na política, foi igualmente ignorado pelo controverso Gigante. Em meio aos casos já citados o chefe da província tentou, e em alguns casos até conseguiu, tornar sigilosas as informações sobre os assassinatos da Polícia Militar, sobre a gestão dos recursos hídricos, sobre o controle dos presídios e sobre as obras do transporte público. Ora, pode haver algo mais descreditável do que impedir a população de obter informações sobre estas políticas públicas por até 25 anos? Parece que para o Gigante pode. Parece que ele não tem tanto apreço assim pelo o à informação pública.

Não bastasse a contradição do nosso já preguiçoso Gigante, na província de São Paulo, com os fatos narrados, agora sua sonolência é retumbante. O chefe da província, não satisfeito com seus mandos e desmandos em seu latifúndio público, achou por bem ir mais além. A meta agora é fechar escolas!
Como se não fosse intragável a péssima qualidade da educação pública da província, a falta de investimentos e a truculência que os homens armados do chefe da província trataram os professores quando estes fizeram greve por melhores condições de trabalho, e outros tantos assaltos ao futuro dos estudantes, agora o chefe achou por bem cortar o mal pela raiz e simplesmente decidiu fechar quase uma centena de escolas em toda a província.

Se nos outros casos o Gigante teve dúvidas, preguiça, sono, ou preferiu dar tempo ao tempo para tirar melhores conclusões, fechar escolas é uma ação muito difícil, para não dizer impossível, de se explicar qual a lógica de tamanho absurdo.

Os alunos e alunas das escolas que se pretende fechar, juntos com os movimentos sociais, as organizações populares, sindicatos e organizações de classe, assim como com pais, mães e professores e professoras, decidiram se mobilizar e lutar contra essa atrocidade. Numa atitude merecedora de aplausos em pé, e que ficará para a história da província, ocuparam corajosamente as escolas e disseram um NÃO bem claro para a proposta de fechamento das escolas (que leva o simpático nome “reorganização das escolas”).

E para nossa surpresa, cadê o Gigante?

Não era ele (o Gigante) que defendia mais educação, mais saúde, mais segurança, mais transporte, mais ética na política e tudo mais? Não era o gigante que acordara e rapidamente tornara-se apartidário, com cantigas que bradavam o “sem partido” e que dizia que sua luta era pela nação? Não era o tal Gigante que se dizia lutar por um país melhor para seus filhos e netos?

O ditado popular é claro: quem cala consente. Talvez o agora calado Gigante não e, na realidade, de um projeto conservador, elitista e liberal, camuflado de ativismo cívico neutro, que tem por objetivo alcançar o poder para implementar seu plano de radicalização dos privilégios burgueses. O discurso de “construir um país melhor” do contraditório Gigante é retórico. Seu silêncio na província de São Paulo deflagra sua ideologia. O Gigante está nu. O que ele quer mesmo é poder. Impeachment, mais saúde, mais educação, mais segurança e blá, blá, blá é um recurso discursivo para ocultar o que o monotemático gigante realmente quer: poder.

Porque te calas, Gigante, de fronte a tamanhas aberrações políticas aqui da província? Por onde andas que não te manifestas? Atos, marchas, caminhadas, aços, hinos nacionais e balões infláveis, cadê?

Das duas uma: ou o seletivo Gigante é azul, ou o Gigante dormiu em SP.

*Todo apoio às ocupações dos estudantes nas Escolas Estaduais. NÃO à reorganização!

Américo Sampaio

É sociólogo e membro da direção da Escola de Governo de São Paulo, que ministra cursos de gestão pública e atua politicamente para a transformação da sociedade brasileira, defesa e promoção dos direitos humanos, dos valores democráticos, da ética e do desenvolvimento nacional.

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