O elo entre a abolição oficial da escravidão e o racismo estrutural no Brasil

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O Brasil viveu 300 anos de escravidão, sendo o último país da América Latina a abolir a prática. Entenda mais sobre esse período sombrio da história do país e como ele deixou marcas que duram até os dias atuais

Quadro “A abolição da escravatura”, de 1849, de François-Auguste Biard.

Por: Isabela Alves

No Brasil, a escravidão foi permitida oficialmente por mais de 300 anos, de 1550 até 1888. O país foi o último da América Latina a abolir oficialmente a escravidão.

De acordo com o Censo de 1872, único levantamento sobre a população escravizada no Brasil, da população total da época (9.930.478), 1.510.806 ainda eram escravizados.

Submetidos a todo tipo de atrocidade e a trabalhos forçados, os escravizados foram trazidos para a América em grandes navios e, nessas embarcações precárias, muitos morreram por conta de doenças, maus-tratos e fome.

Os sobreviventes, assim que chegavam ao Brasil, eram afastados de seus familiares, cultura e religião.

Com a Lei Áurea, assinada em 13 de maio de 1888, o país aboliu a escravidão oficialmente. No entanto, muitos desconhecem a influência do movimento abolicionista nesta decisão.

“Esse fato histórico foi o coroamento de uma série de fatores, como a ação dos jornalistas, a luta parlamentar, dos líderes abolicionistas e dos movimentos de rua. Até mesmo associações começaram a se organizar para comprar a liberdade dos escravizados na época”, afirma Maria Helena Pereira Toledo Machado, professora no Departamento de História da USP e especialista em história social da escravidão, abolição e pós-emancipação.

Imagem da Missa Campal, em 17 de maio de 1888, que celebrou o fim da escravidão.

De acordo com a especialista, a história da abolição brasileira também foi marcada por diversas fugas de escravizados e homicídios dos senhores.

As grandes revoltas ocorreram principalmente nas fazendas do Sudeste. Com o café em expansão, houve uma grande concentração de escravizados na região na década de 1850.

“Por conta dos movimentos sociais, a população começa a ficar com medo e anda assustada pelas ruas. Por outro lado, os fazendeiros e políticos se encontram sem poder, pois tudo estava fora de controle”, explica Machado.

Também é importante ressaltar que, para a lei, os escravizados não eram considerados cidadãos. Prova disso são a Lei nº 1, de 14 de janeiro de 1837, que proibia a educação para os escravizados, e a Lei nº 601, de 18 de setembro de 1850, que afirmava que eles não poderiam ser proprietários de terras.

Em 1850, quando foi decretado o fim do tráfico de escravos internacional, o Brasil se tornou um país contrabandista.

Com o crescimento das lavouras de café no Sudeste, os escravizados que trabalhavam com o trabalho doméstico para os fazendeiros pequenos, por exemplo, começaram a ser vendidos para as grandes fazendas.

“Os escravizados tinham a expectativa de vida de 20 a 30 anos, por conta da alimentação ruim e os castigos intensos. Muitas mulheres deram à luz seus filhos na roça, enquanto estavam colhendo café, porque trabalhavam sem dias de folga. Por causa do medo do fim da abolição, o trabalho dobrou para aumentar lucros. Por outro lado, também houve um aumento de fugas para os quilombos”, conta a especialista.

No pós-abolição, os conservadores criaram versões sobre a abolição como se este momento representasse a generosidade da monarquia.

Até hoje, existe a visão romantizada de que a Princesa Isabel assinou a abolição com uma pena de ouro e de que era uma mulher cristã.

Machado afirma que a princesa Isabel atuava como regente e tentou fazer reformas. No entanto, a Lei Áurea foi assinada tarde demais e ela acabou perdendo o apoio político.

Em contrapartida, Pedro II estava traçando uma estratégia para tentar consolidar o seu 3º reinado, mas, com o fim da escravidão, também veio o fim do Império, em 15 de novembro de 1889.

“As pessoas saíram da escravidão empobrecidas, sem uma casa, sem poupança, e este déficit de políticas públicas se reflete até hoje”, reflete a especialista. Também é importante pensar que, ados alguns anos da abolição, as leis do país ainda perseguiam essa população.

Decretos como o número 847, de 11 de outubro de 1890, tornavam a “vadiagem” um crime, quando, na realidade, essa era uma maneira de controlar o fluxo de pessoas negras andando nas ruas.

A professora afirma que antes a data do 13 de maio era comemorada no país. O escritor brasileiro Machado de Assis descreveu o momento: “Houve sol, e grande sol, naquele domingo de 1888, em que o Senado votou a lei, que a regente sancionou, e todos saímos à rua. Todos respiravam felicidade, tudo era delírio”.

No entanto, com o ar dos anos, o movimento negro ou a fazer duras críticas à data e por isso o 20 de novembro, Dia da Consciência Negra, que marca a morte de Zumbi dos Palmares, em 1695, tem mais peso no país hoje, pois ressalta a atuação e o heroísmo dos negros.

As marcas deixadas pela escravidão e o racismo estrutural no Brasil

Imagem da campanha #BlackOutTuesday, que tomou as redes sociais como forma de protesto contra o racismo, em 2020.

Ao pensar no racismo nos tempos atuais, é necessário ter uma perspectiva histórica e traçar uma relação entre escravidão e racismo.

O racismo estrutural é um sistema que privilegia a população branca, enquanto a negra tem os seus direitos básicos negados. Tomando consciência dos seus privilégios, a população branca deve também tomar atitudes para combater esse sistema perverso de opressão.

“O racismo estrutural dificulta o o à saúde, salário básico e educação. Existe uma falta de consciência nacional sobre a escravidão e a visão de que eles ‘não são humanos’ continua existindo. Existe uma naturalização sobre a violência com os corpos negros”, afirma Humberto Adami, presidente da Comissão Nacional da Verdade da Escravidão Negra.

Como diz o filósofo Silvio Almeida na obra ‘Racismo Estrutural’, o racismo estrutural justifica a escravidão naquela época, da mesma maneira que justifica a desigualdade social atualmente.

Adami afirma que são necessárias políticas para a reparação da escravidão no Brasil, pois foi um crime na história. O Estado brasileiro e empresas privadas ainda hoje se beneficiam com essa dívida histórica.

“A elite brasileira é atrasada e escravocrata, e é por isso que até hoje a maioria da população negra está nas periferias, onde não há impostos e não há urbanismo. Eles são vistos até hoje como cidadãos de segunda classe, já que não conseguem integrar em plenitude a sociedade brasileira”.

Ele ainda afirma que o Brasil a por um epistemicídio, ou seja, o apagamento sistemático de produções e saberes produzidos por grupos oprimidos.

Abdias do Nascimento, autor de ‘O genocídio do negro brasileiro: Processo de um racismo mascarado’, afirma que genocídio é toda forma de aniquilação de um povo, seja de maneira moral, cultural ou epistemológica. Por isso, a produção de intelectuais negros é menos divulgada no Brasil.

Ele ainda ressalta que a Lei n. 10639/2003, que alterou a Lei de Diretrizes e Bases da Educação e a obrigatoriedade do ensino da história africana e afro-brasileira, é fundamental para valorizar e divulgar a história negra no país.

“Nós precisamos divulgar mais histórias, pois cada município tem um negro importante que ainda não é conhecido. Enquanto o Brasil não encarar essa discussão, não irá avançar”, conclui.

 

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Esta reportagem é a primeira de uma série especial sobre a abolição da escravidão e a importância de abolicionistas negros nesta luta. As três próximas matérias da série contarão as histórias de Luiz Gama, Dragão do Mar e André Rebouças.

 


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