Racionamento de doses e risco de desabastecimento marca 101 anos da vacina BCG
Com produção nacional interrompida, Ministério da Saúde corta pela metade as doses de vacina BCG; queda na cobertura vacinal de diversos imunizantes para crianças ameaça retorno de doenças

Por Ana Clara Godoi
A vacina BCG completou 101 anos no dia 1º de julho. O imunizante protege contra tuberculose e é um dos maiores exemplos de uso da vacina para erradicar doenças infectocontagiosas. No entanto, organizações se preocupam com a diminuição do fornecimento da vacina em diversos postos de saúde e clínicas privadas no Brasil.
O Ministério da Saúde reduziu o número de vacinas disponibilizadas aos estados, de 1 milhão para 500 mil doses, segundo ofício enviado às secretarias de Saúde. O problema começou quando a Fundação Ataulpho de Paiva (FAP), única fábrica nacional, localizada no Rio de Janeiro, foi interditada por não cumprir exigências feitas pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).
Atualmente, o Brasil registra queda na taxa de vacinação infantil. O objetivo do Plano Nacional de Imunizações é vacinar 90% do público-alvo, mas segundo o DataSUS, o país atingiu somente 41,3% da cobertura vacinal neste ano.
Diante da baixa disponibilidade nos estoques nacionais, as recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS) de vacinar o mais precoce possível, após o nascimento ainda na maternidade não tem acontecido. Diversos estados têm realizado a vacinação através de agendamento ou restringido as unidades de saúde e horário de atendimento para imunização.
A Anvisa informou em nota que a fabricação permanecerá em pausa até a FAP realizar as adequações solicitadas. O Ministério da Saúde informou em circular que problema pode perdurar por sete meses.
Diversas organizações, sociedades médicas e científicas estão mobilizadas para cobrar as autoridades e explicar os riscos que esse cenário impõe à saúde pública. Em posicionamento, a Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP), a Sociedade Brasileira de Imunização (SBIm), entre outras instituições, explicam os riscos de escassez da vacina.
A vacina BCG é um grande exemplo de como podemos erradicar doenças através da imunização coletiva. Ela foi anunciada em 1º de julho de 1921 após uma longa pesquisa dos ses Léon Calmette e Alphonse Guérin, como meio de proteger os imunizados contra a tuberculose, doença contagiosa que atinge os tecidos do corpo, principalmente os pulmões, e que matou aproximadamente 1 bilhão de pessoas no mundo no século ado.
“Há 101 anos essa vacina foi incorporada no nosso calendário vacinal. A partir daquele momento, demos os largos para controlar a doença, causada por uma bactéria de transmissão muito fácil”, explica o Dr. Gustavo Cabral, imunologista e assessor científico do Instituto PENSI (Instituto Pesquisa e Ensino em Saúde Infantil).
A queda na taxa de vacinação
Em 2019, a OMS identificou a hesitação vacinal como uma das dez ameaças à saúde global. Em estudo publicado pela FAPES índices da cobertura vacinal da BCG e de outros imunizantes aplicados em crianças (hepatite B, meningocócica C, pentavalente, pneumocócica, pólio, rotavírus e tríplice viral) apresentam queda de 23 a 39 pontos percentuais de 2015 a 2021.
“Esses números indicam que ao menos 900 mil crianças não foram vacinadas no país em 2021. Voltamos a apresentar índices de cobertura próximos aos da década de 1980”, afirma a socióloga Carla Domingues, que coordenou o PNI de junho de 2011 a julho de 2019.
Sobre o declínio da vacinal infantil, Cabral também sinaliza outros fatores da baixa adesão de outras vacinas. “A própria pandemia tem gerado um medo na sociedade de sair de casa e ir se vacinar. Além disso, tem o movimento antivacina, que tem gerado um medo enorme na sociedade. Além disso, tem a questão das campanhas de vacinação. Nós somos referência de vacinação no mundo, porém as campanhas de vacinação parecem que tem desaparecido”, explica o imunologista.
No quesito baixa adesão, o livro eletrônico sobre imunização, divulgado e coordenado pela Fundação José Luiz Edygio Setúbal (FJLES) em 2021, aponta mitos que influenciam as pessoas a não se vacinarem. Entre eles está o pensamento de que a vacina não é necessária (31%), o medo dos efeitos colaterais (24%) e medo de contrair a doença que a vacina previne (18%).
A cartilha, produzida juntamente com Hospital Infantil Sabará e o Instituto PENSI, indica as principais fontes de informação sobre as vacinas, o papel das redes sociais e dicas de como ampliar o o à imunização.
A vacina é um pacto social
A imunização é comprovadamente a melhor forma de prevenção contra doenças infectocontagiosas. Cabral expressa que não podemos perder a cultura de adesão às vacinas. “Desde o princípio, nas décadas de 70 e 80, nós temos crescido historicamente nas estratégias de vacinação. Há anos estamos evoluindo e não podemos vacilar e regredir agora. Perder a cultura da vacinação é um regresso enorme”.
Não vacinar seria “uma ação irresponsável pessoalmente, familiarmente e socialmente, porque a vacina é um pacto social, sem ela a sociedade fica extremamente vulnerável”, finaliza.
A ausência de vacinação contra sarampo nos últimos anos é a prova disso. A doença havia sido erradicada do Brasil, até que em agosto de 2019, o Ministério da Saúde decretou emergência em saúde pública por sarampo, devido ao avanço de registros em São Paulo e notificações de casos em outros sete estados do país.