Especialistas discutem relação entre democracia, educação e equidade

Compartilhar

Seminário em SP contou com presença do professor Marc Fleurbaey, da Universidade de Princeton (EUA)

Foto: Divulgação

Por: Mariana Lima

Entre os dias 25 e 26 de junho, o Instituto de Ensino e Pesquisa (Insper) recebeu convidados nacionais e internacionais para o Seminário ‘Democracia, Educação e Equidade: uma agenda para todos’, realizado pela Fundação Tide Setubal, pelo Insper e pela Representação da UNESCO no Brasil, e com a correalização do NEXO Jornal e do Valor Econômico.

O objetivo do seminário era abrir a discussão sobre a desigualdade, com foco na educação e seu impacto para sanar essas lacunas, abordando também a importância da equidade.

As discussões no dia 25 focaram nas desigualdades educacionais, recebendo um público mais técnico da área. No dia 26, a abordagem do debate foi ampliada para falar da construção geral que envolve as desigualdades e as soluções possíveis para elas, sempre no âmbito da educação.

A abertura do evento no dia 26 ficou a cargo das representantes das organizações realizadoras: a diretora do Insper, Carolina da Costa; Maria Alice Setubal, presidente da Fundação Tide Setubal; e a presidente da representação da UNESCO no Brasil, Marlova Noleto.

“Temos que discutir o fortalecimento de organizações nas periferias e a ampliação do diálogo em um momento em que quase não se ouve mais. Minar nas pequenas desigualdades individuais que estão naturalizadas na sociedade”, declarou Maria Alice Setubal.

“A desigualdade cria pessoas que não se sentem dignas, que não se sentem capazes de terem os mesmos sonhos que outros grupos”.

Palestra magna – Abertura das discussões

A participação do economista e professor da Universidade de Princeton (EUA), Marc Fleurbaey, que relaciona seus conhecimentos econômicos com a defesa da redução das desigualdades sociais, trouxe novas perspectivas para o debate proposto pelo seminário.

Marc participou de uma das mesas de debates do evento, e iniciou as considerações do 2° dia com a conferência plenária em que abordou os aspectos da democracia e da justiça social.

Durante sua apresentação, o economista mostrou a pesquisa realizada com a colaboração de um grupo de pesquisadores, que resultou no livro ‘Um manifesto para o progresso social: ideias para uma sociedade melhor’ (2018), além dos relatórios do processo de coletas de dados e conclusões deste trabalho.

“Não podemos ser neutros sobre os valores nos quais a sociedade está caminhando. Estamos no pico das possibilidades, mas encaramos um abismo a nossa frente”. O abismo ao qual Fleurbaey se refere é o aumento da desigualdade em diversas partes do mundo, resultando em crises sociais. A migração, a desconfiança no sistema democrático e os danos ambientais são reflexos deste quadro.

Marc Fleurbaey durante a 1ª mesa de debates. | Foto: Mariana Lima

Fleurbaey considera que, no momento, não existe mais um “autor do progresso”, ou seja, um rosto que represente a mudança. Ele cita o caso dos coletes amarelos na França. “Não temos mais uma liderança nestes movimentos. É a mobilização do grupo que ganha destaque e que age”.

O economista também chamou a atenção para o fato de que a educação não é uma “pílula mágica”, capaz de resolver todos os problemas da sociedade, por mais que ela seja importante. “A educação é um espelho da sociedade. É fácil dizer que ela pode resolver tudo, mas se outros aspectos da sociedade como um todo não funcionam não tem como ela sanar todos os problemas”.

Ele ainda ressalta que a educação, muitas vezes, é pensada para perpetuar desigualdades. “A educação é importante em qualquer lugar, mas ela não é uma solução universal. As elites, por exemplo, sempre conseguem mudar o sistema para favorecê-las”.

As desconexões entre os indivíduos de uma mesma sociedade podem colaborar para este cenário, em que as elites sentem raiva de outras classes da sociedade. “Ficam em suas bolhas e não reconhecem as realidades alheias, cultivando uma relação de ódio. Esse cenário gera um círculo vicioso em que ações afirmativas podem atuar como um tiro no pé. Os grupos minoritários têm que ser a fonte de sua própria inclusão, e serem inseridos na corrente principal”.

Mesas de debates

As mesas de debates tiveram início com uma discussão sobre equidade encabeçada por profissionais ligados à educação e ao estudo da desigualdade. Participaram da mesa o prof. José Francisco Soares [Chico Soares], da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG); Marcos Lisboa, prof. do Insper; e Marc Fleubaey.

A moderação da mesa foi realizada por Marlova Noleto, presidente da UNESCO no Brasil, que abriu o debate com a seguinte reflexão: “A quem se refere o meu ‘todos’? ”. Para ela, a equidade deve ser aplicada através da lógica de tratar desigualmente quem sofre com a desigualdade.

O professor Marcos Lisboa falou sobre como, mesmo com a reforma do ensino médio, ainda não está previsto um cronograma claro do que se deve aprender em cada série. “Como eu vou resolver o problema se eu não consigo mapear onde ele está? A educação no ensino fundamental I melhorou, no II estabilizou, mas no ensino médio está em decadência. É necessário entender esse problema”.

Ele finaliza seu pensamento com a seguinte consideração: “Como vamos entender o que é a equidade, se não somos capazes de decidir o que é ensinado nas escolas? O nível educacional e a permanência da desigualdade são os principais fracassos da sociedade brasileira”.

Assim como Marlova, professor Chico Soares acredita que é necessário “tratar os desiguais de forma desigual para que eles ultraem essas barreiras que impedem que eles cresçam”.

Participantes da 1ª mesa de debates. Todo o evento contou com tradução simultânea de libras. | Foto: Mariana Lima

O professor considera que a falta de um agente verificador na manutenção dos direitos e politicas públicas torna as propostas de igualdade quase como ações cínicas. “Alguém tem que se responsabilizar para garantir que essas propostas de igualdade estão sendo efetivadas e que elas funcionam. Você tem o direito de aprender, mas de aprender o quê? ”

Soares considera fundamental expor as desigualdades dos vários “Brasis”, pois cada região enfrenta tanto problemas gerais como de características únicas.

Para o coordenador do IPSP (sigla em inglês para Internacional sobre Progresso Social, que reúne diversos pesquisadores para produzir conteúdos que colaborem para mudar o quadro da desigualdade pelo mundo), Marc Flaurbaey, o Estado, além de oferecer proteção às pessoas, deve empoderá-las através da inclusão.

“A falta de equidade e as fortes desigualdades são um desperdício do desenvolvimento humano. O trabalho deve promover desenvolvimento”.

Ele ressalta a costumeira associação que se faz entre o desenvolvimento e o patrimônio individual de membros da sociedade. “Ter um ou mais jatinhos não significa que você é mais desenvolvido. A desigualdade cria pessoas que não se sentem dignas, que não se sentem capazes de terem os mesmos sonhos que outros grupos”.

Uma mesa para as periferias urbanas

A segunda mesa de debates trouxe para a discussão a Desigualdade de raça e gênero nas periferias urbanas e a emergência de novos agentes políticos. Participaram da mesa a professora da FFLCH-USP, Márcia Lima; a professora da Universidade Federal Fluminense (UFF), Flávia Rios; e o fundador da Mídia Periférica, Enderson Araújo.

“Sou invisível porque as pessoas se recusam a me ver”. É com a citação do livro ‘Homem Invisível’, de H.G. Wells, que a professora Márcia Lima inicia as suas considerações. Em sua fala, Márcia aborda a invisibilidade das violências contra a população negra, e de suas produções científicas e lutas sociais.

“A população negra sempre está isolada na sociedade, principalmente em relação às oportunidades de crescimento e igualdade. Não temos um enfrentamento destas desigualdades porque elas nunca estão na agenda para isso”.

Ela ainda ressalta a questão do encarceramento de jovens negros e mulheres negras no Brasil. “O racismo é sempre estrutural. O encarceramento não tem o objetivo de reeducar, mas de promover um isolamento. Pagar para retirar essas pessoas de circulação”.

A professora Flávia Rios abordou a trajetória do feminismo da década de 1970 aos dias atuais e a permanência das desigualdades entre a população negra e demais minorias. “São minorias que na verdade são a maioria, mas essa sociedade patriarcal posiciona mulheres e as demais minorias de forma hierárquica e desigual”.

Enderson Araújo teve que trabalhar desde cedo para ajudar a sustentar a família. Evadiu a 7ª série cinco vezes, e veio terminar o ensino médio no ano ado. Por sua trajetória de luta, Araújo busca promover, por meio do Mídia Periférica, os direitos dos jovens periféricos.

“A mídia tradicional cria uma imagem caricata das periferias. Os jovens periféricos antes de praticarem a violência são violentados pelo preconceito, pela desigualdade e pela falta de oportunidades”.

Justiça social e fortalecimento da democracia

A última mesa do 2° dia do seminário abordou a Relação entre Estado e Sociedade Civil para Promoção de Justiça Social e fortalecimento da democracia. Formaram a mesa a presidente da Fundação Tide Setubal e do GIFE, Maria Alice Setubal; a pesquisadora da Universidade Federal da Bahia (UFBA), Celina Maria de Souza; e o prof. Ricardo Paes de Barros, do Insper.

A pesquisadora Celina Maria trouxe dados referentes às adaptações de artigos e leis ligados às políticas sociais. O conflito entre agendas econômicas e sociais é o que causa dificuldades nas aplicações de políticas públicas. “A estabilidade política permitiu espaços para a agenda social se desenvolver. Mas ela esbarra em cortes e sanções de ambas as partes”.

O professor da Insper trouxe de volta questionamento levantados na 1ª mesa de debates pelo prof. Chico Soares: o mau investimento na educação brasileira. “O Brasil investe de forma ampla na educação, quando deveria focar na população mais pobre, já que a classe mais rica pode pagar por esses direitos. Não é à toa que temos várias escolas particulares”.

Participantes da 3ª mesa de debates. | Foto: Mariana Lima

Soares ressalta a ineficiência brasileira nos gastos com a educação. “Com o que é gasto nesta área era para termos um nível educacional muito maior do que temos hoje”.

Maria Alice Setubal finaliza o evento com suas considerações sobre democracia e desigualdade na politica. “As redes sociais trouxeram uma pluralidade de vozes. Vozes de pessoas que se sentiam excluídas por todos os lados na política, e encontram na ultradireita a chance de serem ouvidas”.

Para Setubal, as pessoas reconhecem as desigualdades, mas deixam a cargo da responsabilidade individual a resolução do problema. “É o velho debate da meritocracia e da individualidade que permeia as soluções mágicas para os problemas, como é colocada a educação”.

E ela finaliza com a seguinte ponderação sobre o seminário: “Não temos que mudar a chave pela qual estamos agindo, mas fazer com que as nossas pautas sejam entendidas por todas as pessoas”.