Casamento infantil: quando a “dona da casa” é uma criança

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Brasil ocupa 5º lugar entre países com maior incidência de casamento infantil. Com a vulnerabilidade econômica e social na pandemia, a violação pode afetar 110 milhões de meninas no mundo

Foto: Adobe Stock | Licenciado

Por: Mariana Lima

Aos 5 anos, Carla* viu sua família desmoronar após a morte do pai. Ele era visto como a estrutura da família e sua morte fragilizou a esposa, que havia se casado muito jovem em busca de proteção.

Carla e os quatro irmãos foram viver com parentes. Apenas dois anos depois, ela e dois irmãos voltariam a morar com a mãe. O reencontro feliz, contudo, marcou o início de um sofrimento. O novo companheiro da mãe de Carla ou a abusar da menina, que tinha apenas 8 anos.

“Ele começava a me tocar assim que minha mãe saía para trabalhar. Ele não me penetrava, dizia apenas que ‘eu ainda não estava pronta’. Quando eu menstruei aos 11 anos, comecei a ter noção do que ele estava falando”.

Carla conseguiu esconder a menstruação por um ano. Cortava pedaços de pano de chão para controlar o sangramento. Mas o padrasto acabou descobrindo.

“Ele era visto como um homem bom por todos. Ninguém desconfiava. Quando ele descobriu que eu estava menstruando, me deu uma surra, só não tentou nada porque meu irmão mais novo impediu. Ali resolvi contar. Mas ninguém acreditou”.

Como Carla não tinha marcas e ainda era virgem, foi vista como mentirosa. Não aguentando mais a situação, ela saiu de casa e ou a viver nas casas de familiares. “Mas não dava para ficar muito tempo. Os maridos das minhas tias mostravam as genitálias para mim, tentavam me beijar, me apertar. ei a ter nojo de homem”.

Foi na casa de uma das tias que Carla conheceu seu futuro marido, aos 14 anos. Ele era 13 anos mais velho. Quando o pedido de casamento veio, ela aceitou a proposta por enxergá-la como uma salvação. Na época, bastou uma autorização da mãe para a união se tornar oficial.

Entretanto, a relação não foi como Carla imaginava. Além de não respeitar a jovem e forçar o sexo, o marido também não queria deixá-la estudar. Carla não cedeu. ou um ano caminhando 7 km até uma escola pública. Apesar do marido ter um carro, ele se recusava a auxiliá-la. No ensino médio, Carla começou a vender doces na escola, o que possibilitou que tivesse uma renda independente.

Seu sonho era cursar medicina. Já tinha ado na primeira fase do vestibular quando, aos 17 anos, descobriu-se grávida. “Foi como dar dez os para trás. Estava decidida a buscar a separação, mas minha mãe não me aceitaria, mesmo que já não estivesse com o meu ex-padrasto. Para onde eu iria com meu filho? Eu só queria que ela [a mãe] abrisse a porta e dissesse ‘venha’, mas tive que encontrar outro caminho”.

Quando o filho já tinha um ano, Carla pegou uma mochila com as suas coisas, levou o filho para ficar na casa da mãe e saiu em busca de um emprego que permitisse alugar um canto para os dois. Trabalhando em três turnos como recepcionista, Carla ganhava dois salários mínimos, que na época não ava de R$ 180, e morava na casa de uma prima.

“Foi quase um ano assim, até poder alugar uma quitinete. O pai dele tentou me acusar de abandono na justiça, mas não conseguiu tirar meu filho de mim. Ele falava que eu não sobreviveria um ano sem o dinheiro dele, que eu voltaria. Já se foram duas décadas e nunca voltei”.

Pouco depois, Carla deixou o emprego como recepcionista e ou a atuar como sacoleira, vendendo roupas e órios em feiras de diversas cidades do Maranhão. Após sofrer um assalto que destruiu seu frágil negócio, ela conseguiu um emprego no setor istrativo de uma empresa. Por ter estudado informática na escola, aproveitou a oportunidade para construir carreira na área de istração, na qual viria a se formar anos mais tarde.

Hoje, Carla tem uma vida bem estruturada, faz terapia e ajuda outras meninas do interior do Maranhão a não vivenciarem a mesma violência que ela. Seu filho está se formando no Ensino Superior e ela ainda tem uma menina de 9 anos, fruto de outro relacionamento. Para ela, Carla busca oferecer toda a base que lhe foi negada.

“Desde cedo falo sobre o corpo dela, que ninguém pode mexer, sobre a menstruação. Quero que ela esteja preparada para essas mudanças e saiba que deve falar sempre, se algo acontecer. Uma vez eu perguntei ‘o que você deve fazer se alguém tocar nas suas partes íntimas’ e ela me respondeu ‘eu dou um chute e saio correndo’”, conta com um sorriso largo.

Ainda assim, Carla precisa lidar com as dores que ficam. “Hoje, consigo falar sobre isso sem machucar tanto. Quero ser conhecida pela pessoa que venceu isso, não que ou por isso. Mas ainda tenho muito o que trabalhar. Nunca deixei o pai da minha filha dar banho nela porque confiança é algo muito difícil para mim. Meus filhos são a minha base. Quero que eles tenham seus desafios, mas que jamais sejam os mesmos que os meus”.

A história de Carla não é um caso isolado. Diversas meninas vivem hoje a realidade do casamento infantil, enquanto outras tantas mulheres guardam as cicatrizes desta trajetória.

Arte: Mariana Lima (Observatório do 3º Setor)
É melhor do que ar fome

De cada quatro mulheres brasileiras, uma se casou antes de chegar à maioridade. Neste cenário, a taxa do casamento infantil no Brasil (26%) está acima da média mundial (20%). É o que revela um relatório do Fundo de População da Organização das Nações Unidas (ONU), divulgado em 2020.

Pobreza, vulnerabilidade, altos índices de evasão escolar e a gravidez na adolescência são alguns dos fatores que cercam a ocorrência da violação, levando o Brasil a ocupar o 5º lugar entre os países com a maior incidência de uniões precoces, com 36% das meninas casadas até os 18 anos e 11% até os 15 anos, de acordo com o estudo Girls not brides.

De acordo com as especialistas ouvidas pela reportagem, quatro elementos fortalecem a naturalização das uniões precoces: a existência de uma cultura adultocêntrica, ou seja, uma sociedade centrada para atender o adulto; uma estrutura patriarcal, que restringe o espaço da mulher ao lar; os padrões desiguais de gênero, que privilegiam o masculino em detrimento do feminino; e o racismo estrutural.

Para a assistente social Márcia Monte, especialista no Enfrentamento à Violência doméstica contra crianças e adolescentes e assessora técnica da ONG Visão Mundial, são essas as bases que dificultam a conscientização e o combate da violação.

O Brasil, por exemplo, tem o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que proíbe o casamento infantil. É uma das leis mais avançadas no mundo na proteção de crianças e adolescentes. Porém, aqui, vemos padrões construídos por anos, muitas vezes ratificados por meios de comunicação, religião e políticos que defendem ou são indiferentes a este problema. Quando uma prática nociva como o casamento infantil é naturalizado culturalmente, a própria sociedade tem dificuldade de reconhecer como problema em si”, argumenta.

Para a pesquisadora Vitória Brito Santos, doutoranda em Diversidade Cultural e Inclusão Social na Universidade Feevale, violações como o casamento infantil encontram barreiras para o debate na sociedade. Segundo sua pesquisaELA SE JUNTOU COM UM CARA! Um estudo sobre casamento de crianças no Brasil‘, a falta de rituais que remetam ao casamento, como a ida ao cartório ou a união religiosa, afeta na percepção social da violação.

“Não temos os ritos do matrimônio sendo cumpridos nesses casos, mas, se essa menina menor de idade está morando na casa ou se relacionado com um adulto, ela está em uma união precoce. A falta desses elementos dificulta que as pessoas enxerguem isso. Vemos notícias de outras localidades, principalmente do Oriente Médio e da África, e os comentários são na linha ‘que povo bárbaro’, ‘como podem não respeitar as crianças?’, mas fazemos a mesma coisa por aqui”, revela.

Ela ressalta que se cultua uma visão de que é melhor a menina estar casada do que ando fome e vivendo na pobreza com a família de origem.

“Que escolhas são oferecidas? Como podemos achar ‘ok’ uma menina escolher entre essas opções? Essas meninas são vistas como coisas. Um pai vende a filha por questões financeiras ao negociar o casamento dela sem que ela saiba. E as pessoas não veem problema, porque a lógica é que a família terá uma boca a menos para alimentar e a menina estará ‘segura’ no casamento”, aponta Vitória.

A subnotificação em cena

Segundo a pesquisa ‘Estatísticas de Gênero: Indicadores Sociais das Mulheres no Brasil‘, do IBGE, entre 2011 e 2019, houve uma queda de 55% nas uniões de meninas com até 17 anos, indo de 48.637 para 21.769, respectivamente. Contudo, a queda não significa a não ocorrência da violação.

Arte: Mariana Lima (Observatório do 3º Setor)

A diminuição observada pelo IBGE acompanhou a sanção da lei 13.811/2019, que altera o Código Civil para retirar as exceções legais que viabilizavam a união com menores de idade. Desta forma, ou a ser proibido o casamento antes dos 16 anos. Antes disso, a legislação permitia a união entre 14 e 17 anos desde que houvesse autorização dos responsáveis legais.

Raíla Alves, gerente de Empoderamento Econômico e de Gênero da Plan International Brasil, aponta que a mudança na lei tem pouco efeito nos casos reais, pois a maior parte das uniões ocorre sem o registro formal.

“Casamento infantil é a união formal e informal em que um dos envolvidos é menor de idade. Essa menina pode não estar formalmente casada, mas o relacionamento e a mudança para a casa de homem adulto, geralmente, 10 anos mais velho, é uma violação de direitos. Minha avó viveu isso. Uma menina negra de 15 anos morando e se relacionando com um homem uma década mais velho”, conta Raíla.

Em nível global, de acordo com o estudo ‘Covid-19: A threat to progress against child marriage‘, do Unicef, dez milhões de casamentos infantis a mais podem ocorrer antes do final da década. A previsão atual é que, até 2030, 110 milhões de meninas acabem em uniões precoces forçadas, ou seja, 10% a mais em relação à previsão inicial segundo a ONG Visão Mundial.

“Na pandemia, elas estão em maior risco. O casamento se torna a única possibilidade para conseguirem recursos econômicos e melhorar a vida de suas famílias. E, neste momento, elas estão afastadas das redes de apoio, devido à exclusão digital. Isso dificulta ainda mais as denúncias que já são subnotificadas”, afirma Raíla Alves, da Plan Internacional Brasil.

Para Márcia Monte, da ONG Visão Mundial, a desatenção do Brasil em relação à possibilidade de agravamento das uniões precoces é alarmante. “Se o Brasil avançou com leis importantes como o ECA, estamos retrocedendo, diante da problemática naturalizada do casamento infantil. E com esses casamentos, acabam aumentando também os números do abandono escolar e de gravidez em mães adolescentes”.

Marido no lugar da sala de aula

De acordo com a PNAD Contínua de 2019, pelo menos 11,5% das meninas e mulheres que abandonam os estudos o fazem porque precisam se dedicar aos serviços domésticos, enquanto 23,8% deixam a escola por causa da gravidez precoce.

Para a pesquisadora Vitória Brito Santos, a falta de políticas públicas adequadas por parte do Estado faz com que a escola seja o início e o fim da proteção dessas meninas e adolescentes.

“A escola está ali para o ensino. Não foi criada para cuidar ou proteger, mas a colocamos como um espaço de socorro. A escola sozinha não é capaz de resolver tudo. A infância não foi dada para cuidar de uma bebê. Temos que educar nossas meninas para que elas vejam o final feliz no estudo e não no casamento. Elas não deveriam ter que enxergar o casamento como uma tábua de salvação”, defende.

De acordo com a pesquisa do IBGE ‘Estatística de Gênero‘, a taxa de gravidez na adolescência foi de 59 nascimentos a cada 1 mil meninas de 15 a 19 anos em 2019. Em 2011, a taxa era de 64 para 1 mil. A redução de 7,81% é positiva, mas o número ainda está bem acima da média mundial, de 41 por 1 mil

Já o estudo ‘Tirando o Véu‘, realizado pela Plan Internacional com grupos focais na Bahia e no Maranhão em 2019, reforça a desigualdade de gênero ao apontar que a responsabilidade de uma gravidez fica com as meninas. Para Raíla Alves, da Plan International Brasil, a gravidez na adolescência é causa e consequência do casamento infantil.

“Se não ocorre [a união precoce] porque ela está gravida, essa gravidez vem logo depois que am a viver juntos. Essas adolescentes querem começar a viver sua sexualidade, o que é visto com maus olhos na sociedade. Um parceiro mais velho que vai ‘cuidar delas’ torna as coisas mais tranquilas socialmente. Isso é naturalizado para elas porque temos diversos grupos que não veem a sexualidade feminina como algo natural no país. Uma consequência direta da inexistência de uma educação sexual”, afirma.

É importante salientar que o Código Penal, no artigo 127, estabelece como estupro de vulnerável a relação sexual ou qualquer outro ato libidinoso com uma pessoa menor de 14 anos de idade, mas “no cotidiano das comunidades isso foi naturalizado e aceito culturalmente”, indica Márcia Monte, da ONG Visão Mundial.

Ela argumenta que, como uma sociedade patriarcal, machista e racista, o Brasil reafirma essa postura nas músicas, nos ditados populares e nas palavras preconceituosas ditas “sem intenção”.

“Desta forma, sequer conseguimos perceber as meninas negras e pobres como sujeitos capazes de grandes realizações. Romper esta realidade é um ato revolucionário. E, como uma mudança cultural, exige esforço, vontade política e, principalmente, investimento orçamentário para atender a este público”, pontua.

*O nome foi alterado para proteger a identidade da entrevistada.


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