Nós (heróis ou coitadinhos?) e o papel das organizações não governamentais

Impacto das ONGs
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Imagem: Adobe Stock.

Por Beto Pereira

O papel fundamental das organizações não governamentais na luta pela inclusão e ibilidade de milhões de brasileiros, incluindo aqueles com alguma deficiência, pode ser retratado também pela minha própria história de vida.

Nasci no interior de São Paulo. Sou o filho mais velho de quatro irmãos. Meus pais tinham poucas condições financeiras e baixa instrução escolar. Ao saberem da minha deficiência visual, fizeram tudo que estava ao alcance deles para reverter o quadro. Após cinco anos e centenas de consultas a religiosos e profissionais de saúde e três cirurgias nos olhos, ouviram dos médicos que nada mais poderia ser feito pela minha visão.

Em meados da década de 80, fui matriculado em uma escola regular, na qual era o único estudante com deficiência visual. No contraturno, era atendido em uma organização de habilitação e reabilitação. Lá, aprendi o Braille e a utilização da bengala, entre outros recursos para as atividades da vida diária.

Para garantir que eu acompanhasse as aulas, meus pais alugavam uma máquina Braille por cerca de meio salário-mínimo por mês. Comprar o equipamento na época era impossível pelo alto custo: mais de 1.500 dólares.

Enquanto meu pai trabalhava para manter a família, minha mãe era a responsável por me levar e me buscar na escola e na associação – que ficavam longe de casa – e por cuidar dos outros três filhos. Hoje, entendo o quanto aquilo foi desgastante para eles. Fizeram o que podiam e com todo amor do mundo – e isso foi fundamental para meu processo de desenvolvimento.

Na escola, fui acolhido, apoiado e incentivado por muitos professores e por algumas crianças, mas também me deparei com o preconceito e com o bullying – termo inexistente na época.

Aos 12 anos, quando estava perdendo o pouco de visão que me restava, uma professora enviou um bilhete para meus pais. Uma amiguinha me ajudou a ler e nele, ela (professora) dizia “ele somente vem para escola para esquentar a cadeira”. Aquilo não era verdade, mesmo porque, na maioria das matérias, eu tinha um ótimo desempenho. A dificuldade na aula daquela professora se devia ao fato de a dinâmica ser totalmente excludente. Não tive dúvidas, rasguei o papel na frente dela e fui mandado para a diretoria.

Depois de explicar o ocorrido, a diretora me liberou e solicitou que a professora subisse para dar a sua versão. Retornei para a sala de aula e falei em bom tom: “professora, agora é sua vez de subir para a diretoria”. Nascia, provavelmente, naquele momento, a pessoa que hoje sou: indignado com as injustiças e apaixonado pela diversidade humana, pela defesa dos direitos das pessoas com deficiência e dos segmentos mais vulneráveis de nossa sociedade.

Alguns anos depois, comecei a procurar oportunidades em emissoras de rádio da região de Jundiaí, cidade do interior de São Paulo onde moro, para atuar no veículo que desde criança era minha grande paixão. Certa vez, enviei áudios para testes. ei em todas as etapas, mas quando o proprietário soube que eu era uma pessoa cega, afirmou que me contrataria apenas quando eu procurasse um médico e voltasse a enxergar.  Aquilo foi uma das coisas mais duras que ouvi na vida. Por pouco não desisti.

Nesta minha jornada, conheci uma associação de assistência à pessoa com deficiência visual. Mesmo eu já atuando no mercado de comunicação e dando os primeiros os na defesa de direitos das pessoas com deficiência, a instituição representou um divisor de águas em minha trajetória. Tive a oportunidade de ar profissionais, informações e tecnologias que elevaram minhas possibilidades de crescimento enquanto pessoa cega e como profissional.

Aquele mesmo menino hostilizado por alguns amiguinhos e por uma das professoras e recusado por aquele proprietário de emissora de rádio, anos mais tarde fez alguns trabalhos de destaque na mídia, teve a oportunidade de ar por capacitações em outros países e hoje compõe inúmeras instâncias de direitos em âmbito nacional e internacional e preside uma organização para cegos.

Embora saiba que cheguei a um lugar de certo destaque na comunicação e, sobretudo, na representatividade social e política, não visto capa de herói, porém me recuso a vestir a de coitadinho. Sou uma pessoa com algumas habilidades, um pouco de sorte, com muitas fragilidades, e ainda assim não perco o vínculo com minhas origens.

Hoje, me considero uma pessoa realizada, mas nunca acomodada. Meu trabalho permite que, de alguma forma, eu retribua para a sociedade muito daquilo que recebi dela. Por isso, sempre destaco a importância das organizações não governamentais que atuam na habilitação, reabilitação e defesa de direitos das pessoas com deficiência. Sem elas, minha história de vida e as histórias de milhões de outras pessoas não seriam as mesmas.

Sei que ainda existem muitos desafios, inúmeras lutas para a conquista e garantia de direitos das pessoas com deficiência e, ao contrário do que afirmava aquela professora, nem eu e nem qualquer outra pessoa sem ou com deficiência devemos estar no mundo para esquentar cadeira. Podemos e devemos, isso sim, aquecer a cidadania.

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*A opinião dos colunistas não reflete, necessariamente, a opinião do Observatório do Terceiro Setor.

Sobre o autor: Beto Pereira é Assessor de ibilidade e Inclusão da Laramara, Associação Brasileira de Assistência à Pessoa com Deficiência Visual, e Presidente da Organização Nacional de Cegos do Brasil


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