Navio negreiro alguns séculos depois

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Nos últimos tempos, os meios de comunicação têm noticiado situações de flagrante violação de direitos humanos motivados pela fome, violência desenfreada, intolerância, discriminação racial ainda tão presente em nosso meio. Tem sido destaque o transporte ilegal de migrantes, na sua grande maioria, negros, que estão morrendo afogados no Mediterrâneo, e não se vê uma ação concreta e humanitária dos governos europeus para esta questão que afeta sobremaneira o princípio universal da dignidade humana. Diante da precariedade do transporte, quando seus barcos viram ou apresentam algum problema, nem sempre há ajuda por perto.

Cerca de mil e novecentas pessoas já ficaram sepultadas no Mediterrâneo, nessa travessia cruel e desesperadora, que muito se assemelha à dos navios negreiros, nos quais negros eram transportados em condições sub-humanas. Sim. Transporte análogo ao de escravos. Naquele, grande número de escravos era transportado uns sobre outros, apertados, feridos, sem alimentação, sem água ou alimentados em condições piores ate àquela que é dada aos animais.
Nestes, migrantes são transportados em embarcações superlotadas, nos porões delas e até trancados ou em barcos infláveis sem qualquer infraestrutura, como informam os noticiários internacionais; buscam uma vida melhor e de respeito e em sua maioria, são negros e o preço da liberdade, para muitos, está sendo a morte por afogamento em decorrência da falta de segurança no transporte.

É o círculo de horror se repetindo e que acaba por perpetuar a prática de exclusão pela cor. Cultua-se a ideia de que a ofensa a negros e seus descendentes tenha que ser entendida como algo natural e que não causa dores o que deve ser veementemente rechaçado, incessantemente. São seres humanos; têm sentimento, sofrem dores, angústia, fome, frio!

De outra parte, a fuga da perseguição, da miséria, da fome, da exclusão, incentiva que se busque melhor condição de vida e a necessária paz de espírito indispensável para a sobrevivência.

As correntes físicas não existem nestas embarcações. Mas subsistem as correntes emocionais que aprisionam a alma, os sonhos, o sentimento, a liberdade e podem ser facilmente perceptíveis nos rostos de olhares tristes, preocupados, mas com um pequeno brilho de esperança destes migrantes.

Por que estas pessoas fogem? Muitas delas, incluindo famílias com crianças pequenas, fogem de países arrasados pela guerra, da fome, da pobreza; outras, por serem perseguidas em razão de suas opiniões políticas e religiosas. Aquelas oriundas da África fogem da penúria e pobreza, circunstância que se arrasta desde a abolição inacabada, que não reparou o trabalho da mão de obra escrava gerando uma distorção histórica desproporcional, para pior que perdura até nossos dias.

O Mediterrâneo está se transformando num cemitério de vidas e de sonhos. Há necessidade urgente de que todos os países europeus se irmanem numa campanha humanitária de salvamento de pessoas no mar.

E que não demore. Há necessidade de uma estrutura que contenha barcos, aviões, helicópteros e pessoal suficiente para resgatar as pessoas que cruzam o Mediterrâneo e que estas tenham uma oportunidade para mudar de vida. Até que ponto os governantes estão dispostos a olhar para estes excluídos?

É da natureza humana perseguir o ideal de justiça, paz, tranquilidade. E assim, o “Efeito da justiça será a paz, e a operação da justiça, repouso e segurança para sempre” – Is. 32.17.

Carmen Dora Ferreira

É advogada e presidente da Comissão de Igualdade Racial da OAB (SP).

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