Mulheres sustentáveis: de catadoras a agricultoras, elas fazem a diferença

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Mais vulneráveis às mudanças e aos desastres climáticos, as mulheres são as mais engajadas em soluções ambientais, que vão desde a oferta de saneamento básico até a produção de alimentos sustentáveis

Mulheres sustentáveis: de catadoras a agricultoras, elas fazem a diferença
Fotos: Arquivos pessoais. Da esquerda para a direita: Aline Matulja; Rosana Sampaio; Anne Caroline; e Natália Chaves.

Por: Mariana Lima

Pode não parecer, mas a equidade de gênero e o meio ambiente estão relacionados. Estudos da ONU mostram que efeitos das mudanças climáticas extremas, como terremotos e inundações, afetam com maior intensidade as mulheres, uma vez que elas respondem por 70% da população mundial mais vulnerável e são 80% das pessoas deslocadas devido a desastres ambientais.

A discussão já é antiga. Durante a Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento conhecida como ECO-92, foi divulgada a “Declaração do Rio”, que diz em seu princípio 20 que “as mulheres desempenham um papel fundamental na gestão do meio ambiente e no desenvolvimento. É, portanto, imprescindível sua plena participação para o alcance do desenvolvimento sustentável”.

O cruzamento entre gênero e meio ambiente vem sendo estudado desde 1970 através do ecofeminismo, vertente do feminismo que destaca que os maus-tratos a ambos teriam a mesma origem: uma cultura patriarcal e capitalista, segundo Vanessa Lemgruber, escritora, ecofeminista e autora do ‘Guia Ecofeminista – Mulheres, Direito, Ecologia’.

“As mulheres foram colocadas nesse espaço do cuidado, do trabalho não remunerado. E são as responsáveis por istrar esses recursos pensando no bem-estar do coletivo. A escassez de comida e água, por exemplo, vai ar por elas. E toda vez que algum desastre ambiental ocorrer, elas serão as mais impactadas”, revela.

Ela cita como exemplo a pandemia de Covid-19. “No isolamento, os registros de violência doméstica aumentaram. Outro exemplo são os desastres ambientais que deixam as mulheres desabrigadas e causam o aumento da violência sexual. Ou seja, é um sistema que impacta mais as mulheres de todas as formas, dentro e fora de casa”, argumenta.

A relação entre violência contra a mulher e crise climática foi destacada no estudo ‘Violência de gênero e vínculos ambientais: a violência da desigualdade‘, da União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN, na sigla em inglês).

De acordo com o documento, “a violência de gênero é usada como um sistema para reforçar os privilégios e os desequilíbrios de poder, inclusive sobre o o a recursos naturais”. Entre os exemplos destacados está o caso de pescadores das regiões leste e norte da África que se recusam a vender peixe para mulheres, caso elas não façam sexo com eles.

Mais impactadas e dispostas a buscar soluções

Um estudo da Universidade de Yale revelou que as mulheres estão mais cientes dos riscos das mudanças climáticas para o coletivo, apesar de não ocuparem postos de decisão para o combate efetivo à crise climática.

Observando essa questão, o relatório do IUCN aponta que as tentativas de enfrentamento da crise climática  acabam fracassando porque as questões de gênero não são incluídas neste debate ou consideradas relevantes.

O ponto é reforçado em um artigo da United Nations Climate Change que mostra que o investimento no Objetivo de Desenvolvimento Sustentável (ODS) 5 – Igualdade de gênero, da Agenda 2030, por exemplo, gera retorno para a conservação ambiental, redução da pobreza e política social.

É neste cenário que mulheres brasileiras vêm se movimentando para pesquisar, executar projetos ou, simplesmente, trabalhar em prol do meio ambiente e na construção de uma sociedade mais sustentável.

Sustentabilidade como um direito

A engenheira ambiental Aline Matulja, de 37 anos, percebeu ainda na faculdade, ao desenvolver projetos com comunidades, que o público mais engajado com a pauta da sustentabilidade era o feminino.

“O objetivo desses encontros com as comunidades era reunir pessoas para debater governança pública, questões socioambientais. E quem mais aparecia nessas reuniões voluntárias eram mulheres. Aí já comecei a perceber como o engajamento para a gestão de bens comuns, como água, solo e economia local, interessava mais as mulheres”.

A questão ficou no inconsciente de Aline até ela deixar o trabalho como consultora ambiental em uma empresa privada e decidir abrir a própria empresa: a Roda Ambiental, que presta consultoria para pequenas e médias empresas sem um departamento de sustentabilidade, mas que querem desenvolver projetos nesse sentido.

Foi assim que surgiu o projeto ‘Banheiros Mudam Vidas‘, coordenado por Aline, que buscava promover o o ao saneamento básico em comunidades vulneráveis. Aline explica que ao voltarem para fazer a avaliação nas comunidades após um ano da instalação dos banheiros ecológicos, as principais evasões – quem continuava não fazendo uso do recurso – eram de homens.

Foto: Arquivo pessoal | Aline durante a construção de um banheiro ecológico em 2016

“Quando construímos um projeto com a comunidade, as mulheres têm a melhor percepção de como o projeto tem potencial para mudar as suas vidas e do coletivo. Fazia muito mais sentido focar nelas porque são as mais impactadas pela falta desse recurso básico. O banheiro é um espaço de segurança, de saúde, de cuidado para a uma mulher. Sem ele, a vulnerabilidade só aumenta”, argumenta.

Segundo o Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS), pelo menos 47% dos brasileiros, até 2018, viviam sem o ao esgoto sanitário. Além disso, de acordo com o relatórioPobreza Menstrual no Brasil: desigualdade e violações de direitos‘, do Unicef, cerca de 713 mil meninas vivem sem o a banheiro ou chuveiro em seu domicílio.

Hoje, o projeto, batizado de ‘Sana, atua com foco no recorte feminino e conta com o apoio filantrópico e campanhas online para continuar alcançando as comunidades mapeadas, podendo ser periféricas ou quilombolas.

Para Aline, o projeto é uma de suas principais conquistas, apesar de evidenciar como a agenda do saneamento básico no Brasil continua atrasada, tanto pela falta de priorização do Estado como pela baixa conscientização da população.

“Saneamento básico é questão de saúde, mas nem todos compreendem isso. Falar sobre saneamento deveria ser a agenda número um do Brasil para sustentabilidade, tanto para ampliar o debate sobre o assunto como para exigir investimento e implementação da política pública que a gente já tem”.

Como empreendedora, engenheira ambiental, influencer e mãe, Aline argumenta que o Brasil ainda tem muito o que avançar na questão, uma vez que existe uma tendência de pautar o debate a partir das discussões em países desenvolvidos.

“No Brasil, a gente precisa falar de saneamento básico, erradicação de lixões, poluição plástica. Então, as nossas pautas são muito menos atrativas, apesar de serem extremamente necessárias e prioritárias. Para ter sustentabilidade, precisamos ainda incluir o combate à desigualdade e exclusão social, além da promoção de equidade de gênero. São questões que parecem desassociadas, mas que precisam ser pensadas em conjunto para gerar soluções eficazes”.

O equilíbrio possível

Outro recurso que faz parte da discussão sobre sustentabilidade é o uso da terra e a produção de alimentos. No Mato Grosso do Sul, o Cerrado encontrou proteção nas mãos das mulheres do assentamento de reforma agrária Andalucia, localizado no município de Nioaque.

Uma das mulheres que vem encabeçando a atuação sustentável do assentamento, que existe desde 1996, é a agricultora familiar Rosana Sampaio, de 49 anos, mais conhecida como Preta, que também é presidente do Centro de Produção, Pesquisa e Capacitação do Cerrado (CEPPEC), um laboratório que auxilia as famílias agricultoras na geração de renda no assentamento.

“Antes do assentamento, eu já vinha com uma trajetória no campo. Desde pequena era uma trabalhadora rural ao lado de minha mãe. Saí de Rio Brilhante [interior do MS] para cá quando ingressei na luta sindical com meu marido e três filhos. Foram 5 anos de acampamento, 12 ocupações e 11 despejos até conquistar a terra, ter o assentamento reconhecido”, conta Rosana.

Hoje, 166 famílias vivem no Andalucia. No começo, a dificuldade de lidar com o solo e entender o Cerrado dificultou a vida das famílias, mas, com o apoio da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul e da ONG ECOA, foi possível desenvolver uma estrutura de produção que garantisse o alimento, a renda pelo comércio e protegesse o meio ambiente através do extrativismo sustentável.

Foto: Arquivo pessoal | Rosana no assentamento Andalucia.

Assim surgiu o Manual de Boas Práticas do assentamento, que reúne as instruções necessárias para colher sem impactar negativamente o ambiente. A regra essencial, segundo Preta, é deixar 30% dos frutos na natureza, pensando também nos animais que se alimentam deles. E, se a safra for baixa, não colher.

“Foi uma grande iniciativa das mulheres para descobrir esse novo gancho para preservar os alimentos e deixar uma qualidade de terra boa. Com o apoio da universidade, aprendemos a identificar as espécies e como fazer o uso sustentável dos recursos da região para consumo. Foi uma construção lenta, mas que aos poucos foi tomando corpo e consciência”, revela.

A construção de uma rede focada na sustentabilidade acabou fomentando o empoderamento feminino no assentamento, tanto que todas as mulheres fazem parte do CerraPan, uma articulação de mulheres produtoras do Cerrado e Pantanal.

“Antes, os projetos eram discutidos e executados da forma como os homens queriam. Hoje, nós mulheres conseguimos influenciar mais no debate e na execução, fazer valer a nossa opinião. Somos ativas tanto no espaço doméstico como na produção. Toda a questão de engajamento, inovação, atenção na qualidade de vida das famílias e implementação de projetos vem das mulheres”.

O trabalho realizado no assentamento já é uma referência na região e vem sendo replicado em outros assentamentos do estado. Ainda assim, Preta pontua que faltam políticas públicas de incentivo financeiro aos agricultores familiares, além de ações mais sustentáveis em toda a cadeia de produção do país.

“Às vezes parece que você tá carregando o peso de uma sociedade toda nas costas. Mas você olha e percebe que trouxe ganhos que não tem como mensurar. Espero que os governantes consigam observar a necessidade de promover isso, esse equilíbrio. Ter o a um ar puro, água limpa, a um ambiente equilibrado deveria ser um direito fundamental”, argumenta.

Para além das cobranças ao Estado, Preta reforça a importância da conscientização e do envolvimento da população em prol de um caminho mais sustentável.

“Se você ama seus filhos e sonha com a humanidade em um momento novo no futuro, tem que começar a mudar agora. Coisas pequenas fazem diferença e nem sempre trazem reconhecimento, mas ainda assim são importantes de fazer”.

Uma catadora que educa sobre o meio ambiente

Entre os trabalhos de impacto na questão da sustentabilidade está o do catador de materiais recicláveis. A designer gráfica Anne Caroline Barbosa, de 28 anos, nunca tinha visto um carroceiro até chegar à cidade de São Paulo, após deixar Corumbá, interior do Mato Grosso do Sul, em busca de novas oportunidades.

Contudo, a vida na capital paulista não se mostrou fácil. Anne vivia em um abrigo na Zona Leste da cidade enquanto tentava encontrar emprego na área, o que acabou não acontecendo. Com o tempo, veio o vício em cocaína e crack.

O contato com a questão da reciclagem veio da relação com o marido, que conheceu no abrigo e lhe apresentou ao crack. Ambos atuavam para sustentar o vício enquanto moravam nas ruas, até a chegada da filha. Foi quando decidiram tratar o vício e fazer da reciclagem uma profissão.

“Me apaixonei pela reciclagem, de poder fazer dinheiro com algo que as pessoas jogam fora. É um serviço fundamental para o meio ambiente”, revela Anne.

De acordo com uma estimativa do Movimento Nacional dos Catadores de Materiais Recicláveis (MNCR), existem no país aproximadamente 800 mil catadores. Deste total, cerca de 70% seriam mulheres. Além disso, os catadores seriam responsáveis pela reciclagem de 90% de todo o material recolhido no país.

Apesar do trabalho essencial, o preconceito ainda é constante. “Assim, eu tive o à educação. Posso sair se surgir outra oportunidade. Mas e o catador que não teve isso e sempre foi profissional da reciclagem? Por que ele precisa ficar ouvindo absurdos? A revolta é maior do que a tristeza pelos ataques”.

Buscando conscientizar as pessoas sobre o trabalho dos catadores e a importância de a população ter atenção ao descarte do próprio lixo, Anne começou a postar vídeos nas redes sociais sobre o tema.

“Achava que o preconceito era por falta de consciência das pessoas. Pensava que em São Paulo todos sabiam reciclar e só escolhiam não fazer. Mas quando comecei a produzir o conteúdo percebi que era falta de informação mesmo, tanto sobre a reciclagem como sobre o catador”, conta.

Hoje, Anne tem mais de 92 mil seguidores no Instagram e é apresentadora do quadro CataFlix, no canal do YouTube do Pimp My Carroça.

“Penso em dicas para ensinar de forma lúdica, principalmente sobre descarte. A questão de não escrever numa caixa que tem vidro, por exemplo, porque muitos catadores não sabem ler. Tem que colocar na garrafa pet. As letras vão ser um enigma para ele, que poderá se machucar”, informa Anne.

Apesar da vivência na profissão, Anne aponta que ainda enfrenta obstáculos para ser reconhecida. “É um tabu muito grande reconhecer o catador como autoridade naquilo que ele fala porque o conhecimento é algo para a ‘elite’. Já vi páginas grandes darem informações erradas sobre reciclagem e, quando aponto isso, sou atacada”, revela.

No dia a dia, ela ainda precisa lidar com o assédio e o preconceito por ser uma mulher catadora. “É uma profissão muito masculinizada. Quando comecei a puxar carroça, ouvia tanta buzinada no trânsito que achava que estava mesmo incomodando. Mas quando tomei aquele espaço como meu também me libertei disso. O catador e a vulnerabilidade andam de mãos dadas. Somos essenciais, mas ainda há uma negação para reconhecer que estamos trabalhando”.

O sol também nasce na favela

Ao contrário do que o senso comum pensa, a sustentabilidade não tem restrição de classe, nem de localidade. Isso foi algo que a cientista ambiental Natália Chaves, de 26 anos, percebeu ao longo de sua carreira pesquisando sobre projetos que promovem o o à energia solar em periferias do Rio de janeiro.

“A questão da energia solar é uma paixão que une diversos pontos que eu quero na construção da minha carreira: conseguir, através da atuação profissional na área ambiental, influenciar políticas de impacto social”, revela.

A sustentabilidade já era uma questão trabalhada em casa, mas foi no voluntariado no Greenpeace, ainda na adolescência, que Natália deu os primeiros os para trilhar uma carreira na área ambiental. Através do projeto ‘Juventude Solar’, no Greenpeace, a cientista ambiental vivenciou na prática o impacto da energia solar em comunidades periféricas.

“É uma forma das pessoas terem mais autonomia sobre a sua própria geração de energia. A energia solar é uma das fontes de energia mais democráticas que existem. As favelas enfrentam uma precarização do o à energia, tanto na questão da oferta como no alto preço das contas, que compromete o orçamento familiar. Projetos que colocam a energia solar dentro das comunidades permitem que as cidades se tornem sustentáveis de dentro para fora. Não tem como ter cidades sustentáveis sem inclusão”, argumenta.

A economia gerada pelo o a fontes de energias sustentáveis, segundo a cientista ambiental, permite que as famílias invistam o dinheiro que iria para a conta de luz em outras áreas, como a educação, o o à cultura ou alimentação de qualidade.

Natália, que se especializou na gestão de energias renováveis e cofundou a Rede de Mulheres Brasileiras em Energia Solar (MESol), setor que ainda enfrenta uma sub-representação feminina, pontua que os projetos neste sentido funcionam quando há um trabalho em rede com investimento e escuta.

“Ações assim são fundamentais para tornar esses espaços sustentáveis. As favelas precisam ter aliados internos, como líderes comunitários, que saibam o que a comunidade precisa e parceiros externos para direcionar os investimentos e trazer o conhecimento. Só assim são criados projetos com real impacto, considerando a pluralidade de vozes. Do contrário, surgem projetos sem poder de mudança”.


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