Mobilização em crises humanitárias demonstra potencial da cultura de doação brasileira

Cultura de Doação
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Para Eduardo Cardoso, diretor-executivo da CUFA – Esteio (RS), a mobilização social gerada durante a tragédia do Rio Grande do Sul, em 2024, mostrou que a doação “transforma vidas”. Segundo ele, é possível criar uma rede de solidariedade que também funcione fora de períodos de crises humanitárias

Bruno Peres/Agência Brasil

Por Lucas Neves

Em 2024, o Rio Grande do Sul sofreu uma das maiores tragédias da sua história. As tempestades, ocorridas no mês de maio, resultaram em enchentes que atingiram quase 95% dos municípios do estado, desabrigando milhares de pessoas e causando mortes. Durante a crise, os atos de solidariedade destinados às vítimas se espalharam pelo País, mostrando que o brasileiro consegue realizar grandes mobilizações em prol de causas sociais.

No entanto, o engajamento social durante a tragédia não reflete, necessariamente, a prática de doação existente no Brasil, fora dos períodos de crises humanitárias. O Brasil ocupa apenas o 86º lugar no ranking dos países mais generosos do mundo, de acordo com o World Giving Index 2024. Produzido anualmente, esse relatório global coleta dados de 142 países para classificá-los conforme o seu nível de caridade. Vale destacar que a pesquisa traz dados de 2023, logo, não considera as doações destinadas ao desastre no RS

Para entender o cenário de cultura de doação no Brasil, é preciso conhecer o seu conceito. Joana Ribeiro Mortari, ativista, doadora e cofundadora do Movimento por uma Cultura de Doação, explica o significado do termo.

“A cultura de doação, é um conjunto de comportamentos, símbolos e valores que se expressam no compartilhamento habitual e voluntário de recursos privados em busca de uma sociedade justa, equitativa e sustentável”, afirma.

Segundo Joana, nos últimos 20 ou 30 anos, o Brasil está caminhando na construção de uma consciência sobre a importância de doar. A fala dela vai ao encontro com os dados da Pesquisa Doação Brasil 2022, coordenada pelo IDIS e pelo CAF (Charities Aid Foundation). Afinal, o levantamento mostra que 84% da Geração Z, nascidos entre 1995 e 2010, disseram ter feito alguma doação no ano anterior ao estudo. Esse percentual é 19% maior que o número obtido na pesquisa de 2020.

Doações em crises humanitárias

A discrepância da mobilização por doações em tragédias, em comparação aos “períodos convencionais”, pode gerar a impressão de que boa parte dos brasileiros doa apenas em momentos de catástrofes. Para Eduardo Cardoso, diretor-executivo da CUFA Esteio, no Rio Grande do Sul, essa afirmação é verdadeira, em parte.

“É natural que as pessoas se sintam mais mobilizadas quando veem uma tragédia. Mas isso não significa que os brasileiros não queiram ajudar fora das crises”, afirma Cardoso. Ele salienta que, em muitos casos, o problema é a falta de informação sobre como e onde doar, ou até dúvidas sobre a transparência das organizações sociais.

“Quando a gente consegue mostrar que a ajuda faz diferença em qualquer momento, as pessoas se engajam. É um trabalho contínuo de engajamento e construção de confiança”, diz Cardoso.

Papel das organizações em momentos de crise

A CUFA (Central Única das Favelas) foi uma das principais organizações da sociedade civil que atuou na ajuda humanitária no Rio Grande do Sul. Cardoso conta que, junto a outras organizações, a CUFA conseguiu estar ao lado das famílias quando elas mais precisavam. “Não foi só sobre entregar alimentos ou roupas, mas sobre estar presente, ouvir e construir soluções rápidas”.

CUFA distribuindo donativos aos afetados pelas enchentes no RS. (Imagem: Instagram @cufaesteiors)

Além disso, o diretor-executivo da CUFA Esteio salientou o papel importante da sociedade civil em momentos de tragédia, afirmando que as organizações conseguem atuar com agilidade e sensibilidade em espaços nos quais o poder público, muitas vezes, não chega com a mesma rapidez.

Em seu comentário sobre o impacto das enchentes do Rio Grande do Sul na cultura de doação, Cardoso afirma que a situação deixou uma lição importante: “a doação transforma vidas”. Ele acredita na possibilidade da criação de uma rede de solidariedade capaz de funcionar também fora das emergências. “A gente precisa aproveitar essa força para fortalecer as bases da cultura de doação no País”.

Construindo hábito de doação fora das crises humanitárias

Eduardo Cardoso acredita que é possível fomentar o hábito de doações fora dos períodos de crises humanitárias. Ele destaca que tudo começa pelo trabalho de conscientização, mostrando para as pessoas que a solidariedade não necessita de data ou motivo específico. 

Fora isso, ele aponta que é preciso evidenciar o efeito da doação. “Quando alguém entende o impacto da sua doação, mesmo fora de uma crise, isso cria uma conexão. Contar histórias reais, mostrar resultados e manter um diálogo aberto com quem já doa são formas de manter essa chama acesa.”, comenta Cardoso.

“É uma construção, mas a gente acredita que dá para criar uma cultura de doação constante no Brasil”.

Doação assistencial e doação estratégica

Ao ser questionada se os brasileiros doam de forma impulsiva e emocional, ao invés de estratégica, Joana Ribeiro Mortari pontua que é fundamental entender que toda doação é emocional. “Você não consegue separar a emoção da razão como as pessoas imaginam que seja possível. A gente doa a partir das nossas emoções, quando a gente se solidariza e se coloca no lugar de outra pessoa ou quando queremos ver uma mudança acontecer no mundo”, destaca a co-fundadora do Movimento por uma Cultura de Doação.

Ela diz que é mais adequado dividir as doações entre as “assistenciais” e as “estratégicas”, sendo que ambas são necessárias no Brasil. Para Joana, não deve haver juízo de valor e comparação entre as diferentes formas de doar, sejam elas assistencialistas e simples ou estratégicas e sistemáticas. 

“Num país como o Brasil, onde as diferenças econômicas e sociais são do tamanho que elas são, não dá para dizermos que as doações assistenciais não são necessárias”, aponta Joana, afirmando que as doações estratégicas, que olham para as raízes do problema e consideram a complexidade das relações sociais, também são essenciais.

Desconfiança com as organizações sociais

A Pesquisa Doação Brasil 2022 mostrou que existe uma desconfiança de parte da população sobre as Organizações da Sociedade Civil. Apenas 31% dos entrevistados concordam que a maioria das ONGs é confiável, número que regrediu 10% em comparação com a pesquisa de 2020. 

Quando perguntada se essa desconfiança em relação às ONGs poderia impactar negativamente no resultado da cultura de doação brasileira, Joana alertou ser preciso tomar cuidado para não colocar toda a responsabilidade pela relação de confiança nas organizações. “A gente tem essa tendência a falar como se a organização precisasse chegar até mim”, comenta, sugerindo que as pessoas exercitem a “musculatura da confiança”. 

“Não podem ficar esperando que tudo se apresente à nossa frente como algo perfeito. Temos que ir atrás da causa que a gente quer defender, atrás das organizações em torno dessa causa, e fazer a nossa doação. Colocar o nosso pé no incerto” – Joana Ribeiro Mortari.

Joana também relembra dos traumas sobre corrupção que os brasileiros viveram, citando-os como fator gerador dessa desconfiança. Como as organizações sociais estão ligadas à ideia de fazer o bem, a cofundadora do Movimento por uma Cultura de Doação afirma que um escândalo de corrupção relacionado a ONGs pode afetar ainda mais as pessoas. “O Brasil viveu um grande trauma, que foi o trauma da LBA, da Rosane Collor, e o envolvimento todo em escândalos de corrupção, que envolviam organizações sociais. Esse trauma é uma coisa que fica grudado na nossa alma”.

Apesar dos diversos desafios que envolvem o fortalecimento do ato de doar no Brasil, é possível ser otimista com o futuro. A Pesquisa Doação Brasil 2022 apontou que 84% da população realizou alguma doação em 2022 e que 42,5 milhões de brasileiros doaram para ONGs e/ou projetos socioambientais. Esses dados, somados ao interesse crescente por solidariedade existente nas novas gerações, podem representar um cenário promissor para a cultura de doação brasileira.


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