Mobilidade social exige uma filantropia estratégica, sistêmica, comprometida e com visão de longo prazo

Cultura de Doação
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Imagem: adobe stock

 

Por Vitor Hugo Neia

A filantropia sempre foi associada ao ato de doar, ao gesto de solidariedade que busca mitigar os impactos das desigualdades sociais. Por muito tempo, esse conceito se materializou em ações emergenciais, como doações de alimentos, campanhas sazonais e iniciativas pontuais de apoio a grupos em situação de vulnerabilidade. Embora essas ações sejam importantes, elas não são suficientes para promover transformações estruturais na sociedade. Diante dos desafios que precisamos enfrentar, é preciso avançar para um modelo de filantropia estratégica, baseada na confiança, que não apenas responda às necessidades imediatas, mas que atue nas causas das desigualdades, fortalecendo comunidades para que tenham autonomia e prosperidade no longo prazo.

 

O Brasil é um dos países mais desiguais e com menor mobilidade social no mundo. Por aqui, uma pessoa nascida entre os 10% mais pobres levaria nove gerações, ou quase 200 anos, para atingir a classe média, segundo estudo da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). Isso significa que o ponto de partida de uma pessoa influencia, de maneira determinante, suas oportunidades futuras – o que se agrava ainda mais quando trazemos para essa equação marcadores de diversidade, especialmente raça, gênero, orientação sexual e deficiência. Para romper esse ciclo, a filantropia precisa adotar uma abordagem que vá além da assistência e crie condições concretas para a ascensão socioeconômica de indivíduos e comunidades.

 

Nesse contexto, a inclusão produtiva se destaca como uma das estratégias mais eficazes para a mobilidade social e campo fértil para uma filantropia verdadeiramente comprometida com a transformação social. O o ao trabalho e ao empreendedorismo dignos, com renda contínua e sustentada, pode mudar trajetórias não apenas de indivíduos e suas famílias, mas de comunidades e territórios inteiros. Afinal, não é possível falarmos de superar verdadeiramente as desigualdades estruturais brasileiras sem uma estratégia que considere o desenvolvimento coletivo como ponto de chegada.

 

Para isso, é preciso olhar esse processo de maneira sistêmica: no caso da inclusão produtiva, garantir qualificação técnica sem oferecer apoio psicossocial, desenvolvimento de competências socioemocionais e e para inserção e permanência no mercado de trabalho, ou sem apoiar a formalização, promover a educação financeira e facilitar o o a crédito e a mercados por parte de pequenos empreendedores, por exemplo, significa interromper a jornada pela metade – ou não efetivá-la em sua integralidade. Assim, a filantropia deve se comprometer com cada etapa desse processo, criando um ecossistema que permita que as pessoas e comunidades não apenas em oportunidades, mas consigam se manter e prosperar a partir delas. Essa visão – que denominamos de “jornada completa” – é a espinha dorsal dos programas e projetos da Fundação Grupo Volkswagen.

 

Ao mesmo tempo, mais do que financiar iniciativas sociais, buscamos criar mecanismos que promovam impacto duradouro, articulado com as demandas, potenciais, saberes e vocações das próprias comunidades. Nesse sentido, as capacidades locais devem ser fortalecidas, por meio do apoio, escuta e parceria com atores estratégicos, como organizações sociais de base comunitária, coletivos e lideranças locais. Desse modo, ampliam-se as possibilidades para que as comunidades tenham condições de sustentar e ampliar as transformações necessárias para seu desenvolvimento, sem depender continuamente de recursos externos e criando soluções a partir de sua própria realidade.

 

Projetos como o Tração, atualmente realizado em parceria com o Centro Integrado de Estudos e Programas de Desenvolvimento Sustentável (CIEDS), é um exemplo dessa abordagem. Por meio dele, não apenas oferecemos e técnico a associações de moradores e organizações sociais de base comunitária, por meio de formações que partem de seus próprios interesses e necessidades, mas também construímos, em conjunto com elas, planos de desenvolvimento pensados para o longo prazo e que contam com acompanhamento e apoio financeiro para serem tirados do papel.

 

O objetivo principal do projeto Tração é fortalecer essas organizações, do ponto de vista da governança, gestão e operação, para que elas possam aprimorar a oferta de serviços para suas comunidades, mobilizar mais recursos, expandir sua atuação e, ao final do ciclo, terem condições de caminhar de forma autônoma e sustentável. Além disso, a Fundação assumiu um compromisso de permanecer em seus territórios prioritários de atuação, pelo menos, até 2030, o que permite implantar, com consistência e participação das comunidades, um portfólio de iniciativas que respondam à complexidade desses tecidos sociais.

 

Sem querer esgotar o tema, um último aspecto que gostaria de considerar nessa breve reflexão é o que se convencionou chamar de “filantropia baseada na confiança”. Em linhas gerais, ela reconhece as relações assimétricas de poder e os diferentes lugares ocupados por investidores sociais e organizações apoiadas, valorizando as contribuições, conhecimentos e capacidades dessas organizações, ao mesmo tempo em que flexibiliza exigências formais que, na maioria das vezes, dificultam que os recursos cheguem aonde são mais necessários.

 

Um exemplo concreto dessa prática é o edital “Juntos pela Mobilidade Social”, iniciativa da Fundação Grupo Volkswagen cujas inscrições estão abertas até 16 de maio. Uma vez que prioriza as organizações de menor porte, a Fundação simplificou os documentos exigidos (e apoiará as organizações selecionadas a regularizá-los, se necessário), realizará formações e sessões de tira-dúvidas sobre elaboração de projetos e criou critérios para que as instituições com menor receita anual pontuem à frente daquelas que possuem mais recursos. Além disso, serão priorizadas organizações que tenham, em suas equipes de gestão e estrutura de governança, pessoas pertencentes a grupos minorizados.

 

Transformação social exige visão de longo prazo. Muitas iniciativas são descontinuadas por falta de planejamento ou mudança de interesses institucionais por parte dos financiadores, deixando sem e comunidades que já são vulnerabilizadas. Para que a filantropia cumpra seu papel de forma consistente, é necessário estabelecer compromissos sólidos, com ações estruturadas e previsibilidade, reconhecendo que as dinâmicas da vida real provocarão mudanças de rota, mas que o impacto de longo prazo nunca deve ser perdido de vista. O assistencialismo, embora tenha seu valor em situações de urgência e emergência, não ataca as profundas raízes das desigualdades. Para que o Brasil avance, é necessário um compromisso coletivo com a construção de soluções estruturais que fortaleçam as comunidades e incentivem sua prosperidade. Assim, a filantropia estratégica não é apenas uma alternativa ao modelo tradicional ? ela é uma nova forma de pensar e agir que se mostra essencial para a construção de um país mais justo, com mobilidade social e oportunidades reais para todas as pessoas.

 

*A opinião dos colunistas não reflete, necessariamente, a opinião do Observatório do Terceiro Setor

 

Sobre o autor: Vitor Hugo Neia é diretor-geral da Fundação Grupo Volkswagen e integra a organização desde 2018. Mestre em História Social pela Universidade de São Paulo (USP), possui sólida experiência em planejamento, gestão e execução de iniciativas no terceiro setor, com ênfase em projetos de inclusão produtiva, desenvolvimento comunitário e redução de desigualdades sociais.

 


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