Marielle, Presente!
O Direito é um sistema de controle social e, como toda criação humana, sujeito à influência dos valores culturais e ideológicos mais arraigados na sociedade.
Justiça, Igualdade, Democracia, Diversidade, Respeito, são alguns conceitos que têm seu conteúdo assegurado ou desprezado de acordo com os valores e a ideologia da mente dos membros de uma sociedade – decantados, desde a mais tenra infância, pelos vários modos de difusão social da cultura –, principalmente na daqueles que têm ou terão a função de, justamente, produzir, ensinar e aplicar o conjunto de normas e o Sistema jurídico.
Um dos resultados diretos desse fato é que, de um lado, independentemente do tema específico, a produção das leis e demais normas jurídicas pela sociedade ocorre impregnada pela ideologia e pelos valores do grupo responsável por esse processo, e, de outro, o cumprimento e a aplicação das normas produzidas também será fortemente influenciado e determinado pelos valores e pela ideologia dominantes em cada grupo social.
Ou seja, os valores culturais mais profundamente arraigados em uma sociedade ou grupo social, acabam por exercer influência decisiva tanto na percepção e cognição do mundo exterior quanto no estabelecimento da linha fina que, na mente de cada um, determina o correto e o errado, inclusive, e principalmente, diante no conjunto de normas jurídicas produzidas pela Estado e nos grupos responsáveis por sua istração.
Essa característica é particularmente perigosa – principalmente em relação à atribuição de densidade e capilaridade social a termos como Justiça, Igualdade, Diversidade, Democracia, Respeito etc. – em sociedades desiguais e heterogêneas, clivadas profundamente pelo recalque e pelos processos históricos mal ou não resolvidos.
Por isso é que, no Brasil, a percepção e a eficácia do Direito como um todo, e das normas jurídicas em especial, ganham contornos tão grotescos e peculiares. Por isso que, dentre outras coisas, somos uma sociedade em que as leis “pegam” ou “não pegam”, onde reina a Lei do Gérson (“eu gosto de levar vantagem em tudo. Certo?”) e onde “bandido bom é bandido morto”, mas só quando o bandido for negro e pobre, porque, quando é rico, eu iro e tiro selfie.
Uma sociedade que possui como objetivo assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a igualdade, a segurança o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça, como valores supremos de um Estado Democrático e de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos – principalmente através da utilização do instrumento de controle social chamado Direito –, e que tem como características socioculturais mais marcantes e profundamente arraigadas – valores que se petrificam mais e mais à medida que se escala a pirâmide socioeconômica – a violência, o machismo, o racismo, a segregação, a profunda desigualdade socioeconômica e sua exploração econômica, a desinformação e a alienação sociopolítica, só vai conseguir re-significar (ou atualizar) seus valores culturais – de modo a conseguir impor aqueles desejados a estes dominantes –, se ar a limpo suas mazelas históricas e os processos culturais que cristalizaram e impam à baioneta a segregação, o racismo, a alienação e a exploração econômica.
Como ferramenta de controle social, o Direito pode ser utilizado para aprofundar as mazelas e as características, interesses e valores da oligarquia (como ocorreu na Alemanha nazista ou nos diversos períodos ditatoriais pelos quais ou e a o Brasil) ou para assegurar o desenvolvimento humano, a igualdade, a liberdade, a justiça, a diversidade e a pacificação social.
A escolha entre esses dois caminhos é feita, em geral, pela própria sociedade, por ser sempre ela a única responsável pelas consequências de suas escolhas valorativas, mas, principalmente, pelos grupos sociais que controlam a produção, imposição e fiscalização do instrumento social Direito.
Quanto mais democratizados e humanistas forem os componentes dos diversos setores sociais institucionalizados para a produção e a aplicação do Direito, mais este será permeado pelos valores democráticos e humanistas, o que dá a densidade social necessária à Justiça, à Igualdade, à Democracia, ao Respeito e à Diversidade, por exemplo.
Quanto mais conservadores, segregacionistas, preconceituosos, machistas (e, aqui, não me refiro, obviamente, apenas aos machos heterossexuais cisgêneros), racistas e elitistas, forem os setores sociais institucionalizados para a produção e a aplicação do Direito, mais este será marcado pela chaga da desigualdade e da segregação, mais este servirá apenas de instrumento de proteção dos interesses da classe dominante, mais ele será um instrumento de promoção da desigualdade e da injustiça, sobretudo contra a maioria excluída.
Obviamente, grandes e excelentes exceções há.
Cada vez mais – Em velocidade ainda muito distante da ideal, ressalte-se – vem crescendo o número de legisladores, magistrados, membros do Ministério Público, policiais, agentes de segurança, dentre outros, que defendem e lutam pela democratização e humanização do Direito, da sociedade, e que, diariamente, buscam transformar a sociedade para uma realidade melhor, mais justa, inclusive e democrática.
Mas, esses, infelizmente, continuam sendo isto: exceções.
Exceções corajosas, aguerridas e combativas, e que enfrentam com dignidade e força, por vezes ao custo da própria vida, os ataques e a resistência violenta das oligarquias que há séculos assaltam e dilapidam as riquezas do país e condenam à morte a maior parte da população brasileira, com a cumplicidade criminosa das grandes corporações de mídia, as quais, no Brasil, em sua grande maioria, são controladas pelas mesmas poucas famílias, todas congêneres oligárquicas.
Marielle Franco foi executada por lutar corajosa e abertamente contra isso.
O escândalo de sua execução já desapareceu da grande mídia.
Os responsáveis por sua execução permanecem – e, muito provavelmente, permanecerão – impunes nas sombras.
O Estado de exceção oficializado a partir da deposição da presidenta Dilma e a entrega das riquezas e do patrimônio do país correm a céu aberto.
A cada dia mais e mais execuções sumárias dos indesejáveis e descartáveis de sempre (pobres, negros, homossexuais, mulheres, deficientes, índios) acontecem e permanecem impunes – como as autorizadas e ordenadas pelos governos da ditadura civil-militar que assombra o país desde o golpe de 1964.
Somos, cada vez mais, uma sociedade assassina, elitista, pautada pelos interesses das potências imperialistas que vivem às custas de nossas riquezas e do sangue do nosso povo.
A barbárie e as violações de direitos humanos seguem firmes como realidade onipresente.
Temos leis para minimizar, reduzir e até acabar com a desigualdade, com a violação, com a exclusão social, para podermos construir uma sociedade mais justa, objetivo principal de toda a Constituição Federal de 1988, ela própria uma fonte de normas, princípios e valores humanistas.
A Constituição Federal vigente completará trinta anos no dia 05 de outubro de 2018. Segue sendo ignorada em sua parte mais importante, os direitos e garantias individuais e os objetivos sociais e políticas públicas por ela programadas.
Poderia ser diferente. Mas, como sociedade, escolhemos seguir os valores mais arraigados em nossa psiquê: a violência, o machismo, a corrupção, o preconceito, a segregação, a exclusão, a concentração de renda, a plutocracia, a injustiça, a misoginia, a LGBTfobia, e tantos outros igualmente indesejáveis.
Cabe a nós, como seres humanos e como sociedade, lutar para erradicar esses valores nefastos de dentro de nós e de nossa coletividade, para que os verdadeiros valores sociais possam florescer e, assim, possamos, enquanto sociedade, escolher e adotar o caminho que tão fácil e eleitoreiramente escrevemos nos pedaços de papel que chamamos de leis.
Marielle, presente!! Hoje e sempre!!