Lições de Baku: o papel do terceiro setor nos debates sobre as mudanças climáticas

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Imagem: Adobe Stock.

 

Por Vitor Hugo Neia

“Cidade fustigada pelos ventos”. Esse é o significado mais aceito sobre a etimologia da palavra Baku, cuja origem remonta ao persa arcaico. De fato, ventos fortes sopraram sobre a capital do Azerbaijão durante a realização da 29ª Conferência das Partes da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas, em novembro deste ano. Envolta em controvérsias desde a escolha do país-sede, acusado de violações aos direitos humanos e cuja economia depende altamente dos combustíveis fósseis, a COP29 tinha como objetivo central chegar a uma meta global de financiamento climático que garantisse aos países em desenvolvimento condições justas para a transição para uma economia de baixo carbono e para agir frente aos impactos das mudanças climáticas sobre suas populações e territórios. Recursos esses que deverão ser mobilizados, em sua grande maioria, pelos países desenvolvidos.

Ainda que as negociações tenham elevado o compromisso de financiamento anual para US$ 300 bilhões até 2035 – triplicando a meta anterior, de US$ 100 bilhões -, o número ficou bem aquém da expectativa dos países mais pobres, diante de estudos que projetam a necessidade de US$ 1,3 trilhão de dólares por ano para responder às necessidades do mundo em desenvolvimento. Em meio a um clima de desconfiança e frustração, esse se tornou mais um desafio urgente a ser priorizado até a COP30, que será realizada na cidade de Belém, no Pará, em 2025.

Feita essa síntese inicial, não me atreverei a aprofundar aqui os pormenores das negociações climáticas de Baku. Para isso, há muitas publicações de qualidade que detalham os retrocessos, acordos e resultados alcançados na última COP entre elas, um excelente texto do Instituto WRI, parceiro da Fundação Grupo Volkswagen, que deixarei entre as recomendações de leitura ao final desta coluna. O que me motivou a escolher esse objeto para meu primeiro artigo no Observatório do Terceiro Setor foi o desejo de compartilhar com outros profissionais da área alguns aprendizados que emergiram a partir da experiência que vivi no Azerbaijão, especialmente com aqueles que, assim como eu, não trabalham diretamente com essa temática.

Ao longo de uma semana, tive a oportunidade de participar da COP29 como integrante de uma delegação organizada pelo Grupo de Institutos, Fundações e Empresas (GIFE), com o objetivo de ampliar o engajamento da filantropia e do investimento social privado brasileiro na pauta climática, priorizando lideranças que ainda não atuam nesse campo. O propósito foi provocar-nos a entender e reconhecer os cruzamentos indissociáveis entre a agenda climática e a agenda social, sobretudo em um país tão desigual quanto o nosso, a ponto de incorporamos essa intersecção nas estratégias das organizações que representamos. É desse lugar de reflexão sobre o papel do terceiro setor nos debates sobre as mudanças climáticas que partem as considerações que se seguem.

A título de contexto, existem em uma COP, para além das salas de negociação e dos ambientes formais da política e da diplomacia, pavilhões idealizados pelos países, organismos multilaterais, setor privado, fundações, organizações sociais, entre outros, nos quais acontecem uma série de painéis, trocas e diálogos cujo protagonismo cabe, em grande parte, à sociedade civil. Foram nesses espaços em que as vozes do terceiro setor fizeram-se ouvir de forma mais ressonante em Baku, principalmente de organizações do Brasil, que contou com a segunda maior delegação desta COP, atrás apenas do país-sede. Coube ao setor trazer para os debates a importância de considerar o protagonismo das comunidades locais nas discussões sobre as mudanças climáticas, seus impactos e estratégias de mitigação e adaptação – valorizando os saberes dos povos tradicionais, das lideranças comunitárias, dos grupos minorizados, dos coletivos, e reconhecendo a necessidade de mais mecanismos que garantam sua participação nos espaços de negociação e decisão.

Afinal de contas, pese o fato de os eventos climáticos extremos exercerem um efeito amplo sobre toda a sociedade, eles atingem de forma muito mais profunda os mais vulneráveis, principalmente no chamado Sul Global. Uma pesquisa do Instituto Datafolha revelou que, nas cidades do Rio Grande do Sul atingidas pelas inundações de abril e maio de 2024, 47% das famílias com renda de até dois salários-mínimos perderam móveis, eletrodomésticos ou o próprio sustento; entre as que ganhavam entre cinco e dez salários-mínimos, apenas 13% relataram esses prejuízos. No que tange à raça, 52% dos pretos informaram perdas materiais com as enchentes, número que cai para 26% entre a população branca.

O mesmo cenário de desigualdade ambiental se repete em outras tragédias climáticas pelo Brasil: na dificuldade de o de populações ribeirinhas à educação e aos serviços de saúde durante as secas na Amazônia; nos impactos devastadores das queimadas sobre as comunidades indígenas; nos deslizamentos de encostas na região serrana do Rio de Janeiro, entre tantos outros exemplos que evidenciam o que se convencionou chamar de racismo ambiental. Esse conceito, como define o Fundo Brasil de Direitos Humanos, refere-se à forma desproporcional como as populações mais pobres e marginalizadas sofrem os efeitos negativos das crises ambientais. Educação, saúde, moradia, combate à pobreza, inclusão produtiva e geração de renda – questões historicamente prioritárias para as organizações sociais – estão profundamente entrelaçadas às mudanças climáticas e não podem mais ser debatidas sem considerar seus impactos.

É importante enfatizar que o terceiro setor brasileiro não é homogêneo. Apesar do reconhecimento da relação diretamente proporcional entre mudanças climáticas e exclusão social estar ganhando força nas organizações da sociedade civil, a maioria delas ainda luta contra a falta de recursos, sobretudo financeiros, e contra as demandas mais urgentes de seus beneficiários. Vale lembrar que a pesquisa “Periferias e Filantropia – As barreiras de o aos recursos no Brasil”, realizada pela iniciativa PIPA, revelou que cerca de metade das organizações sociais e coletivos com atuação nas periferias sobrevivem com menos de R$ 5 mil por ano e são, na maior parte, liderados por mulheres e pessoas negras.

Assim, entre as muitas possibilidades e responsabilidades da filantropia em torno da agenda do clima, está não apenas investir em programas e projetos que considerem as interfaces socioambientais desde a partida, mas também garantir que os recursos cheguem às

organizações sociais de base comunitária que estão nos territórios mais suscetíveis a eventos climáticos extremos, tanto em termos de financiamento direto quanto de fortalecimento das capacidades dessas organizações de participarem desses debates e de endereçarem soluções a partir da realidade, anseios, potenciais e conhecimentos de suas próprias comunidades. Só assim é possível falarmos verdadeiramente de justiça climática.

Por fim, outro ponto que dialoga com essas reflexões e que certamente demandará a atuação da sociedade civil organizada diz respeito à tomada de consciência da própria população brasileira a respeito do racismo ambiental e de como as mudanças climáticas afetam os mais pobres e as pessoas negras de forma muito mais acentuada. A Pesquisa Nacional de Desigualdades 2024, realizada pelo Instituto Cidades Sustentáveis em parceria com o Ipec e com patrocínio da Fundação Grupo Volkswagen, revelou que cresceu o número de brasileiros que acreditam que as mudanças climáticas e eventos extremos – como chuvas intensas, calor ou frio intensos e seca prolongada, entre outros – atingem igualmente todas as pessoas, independentemente de cor ou classe social: 80% dos entrevistados concordaram em parte ou totalmente com essa afirmação, aumento de 9 pontos percentuais em relação à edição anterior da pesquisa.

Certamente, as discussões não se esgotam por aqui. E o terceiro setor brasileiro terá a oportunidade única de pautar uma agenda de o e garantia de direitos durante as negociações que acontecerão no Brasil em novembro de 2025, durante a 30ª Conferência das Partes sobre Mudanças Climáticas, a COP30. Não somente colocando na mesa temas estratégicos para os debates e discussões, mas também pressionando governos e organismos multilaterais a fortalecerem a participação e representatividade da sociedade civil, das comunidades tradicionais, da população negra e de outros grupos minorizados nos espaços de decisão. Os olhos do mundo já estão voltados para o nosso país com altas expectativas. Que bons ventos soprem sobre Belém. O planeta não pode esperar.

Referências:
– Balanço da COP29: a nova meta global de financiamento climático e outros resultados | WRI Brasil
– Tese de Impacto pela Mobilidade Social – Fundação Grupo Volkswagen e Artemísia

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*A opinião dos colunistas não reflete, necessariamente, a opinião do Observatório do Terceiro Setor.

Vitor Hugo Neia

Vitor Hugo Neia é diretor-geral da Fundação Grupo Volkswagen e integra a organização desde 2018. Mestre em História Social pela Universidade de São Paulo (USP), possui sólida experiência em planejamento, gestão e execução de iniciativas no terceiro setor, com ênfase em projetos de inclusão produtiva, desenvolvimento comunitário e redução de desigualdades sociais.

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