Justiça para quem?
Legislação
Por: Anne Wilians
No início de fevereiro, no TUCA, teatro da PUC-São Paulo, o ministro Herman Benjamin, presidente do Superior Tribunal de Justiça (STJ), realizou a aula inaugural para os alunos do primeiro semestre da graduação em Direito da Universidade. Reconhecido por sua postura crítica e provocadora diante das questões sociais, o ministro lançou aos calouros uma pergunta que segue ecoando: o o ao Judiciário é uma realidade para quem? Antes de analisarmos essa pertinente indagação, é fundamental compreender por que ela é tão significativa.
Desde a promulgação da Constituição Federal de 1988, o o à Justiça tornou-se um direito fundamental e inalterável, protegido como cláusula pétrea, nos termos do artigo 5º, inciso XXXV: “A lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”.
Esse dispositivo traduz o princípio da inafastabilidade da jurisdição e sustenta a própria noção de cidadania. A garantia de poder recorrer ao Judiciário não é apenas uma formalidade, mas representa esperança, possibilidade de reparação, voz aos invisibilizados e instrumento real de transformação social.
No entanto, apesar dessa garantia constitucional, o exercício do direito ao o à Justiça enfrenta no Brasil inúmeros obstáculos: barreiras sociais, econômicas, culturais, estruturais e políticas. De acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua – o à Justiça (PNAD/IBGE 2019), realizada em parceria com o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), mais de 80% da população brasileira jamais buscou os serviços formais do sistema.
Dentre os motivos estão o desconhecimento, a descrença na eficácia do Judiciário e, sobretudo, a impossibilidade financeira. Isso evidencia que grande parte da população ainda não reconhece a Justiça como espaço legítimo de reparação ou exercício de cidadania.
Ao mesmo tempo, o relatório Justiça em Números 2023, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), aponta que havia 77,3 milhões de processos em tramitação ao final de 2022, sendo 28,6 milhões de casos novos. Esses números revelam o paradoxo brasileiro: enquanto muitos seguem à margem do sistema, outros o sobrecarregam em busca de soluções para conflitos cotidianos.
O Instituto Nelson Wilians (INW), comprometido com o fortalecimento da Cultura da Legalidade, observa nesse cenário um ponto crítico: onde não há efetivação de direitos, existe apenas expectativa de direitos e cidadania parcial. A cultura da legalidade, como concebida pelo INW, exige quatro pilares fundamentais: conhecimento dos direitos e deveres; reconhecimento de si como sujeito de direitos; o real ao sistema de Justiça e às políticas públicas; e pleno exercício da cidadania.
Quando um desses pilares está ausente, a estrutura se rompe. Não é possível conhecer sem se reconhecer, nem se reconhecer sem conhecer. Não se a o sistema de Justiça sem compreender o porquê. Assim, a cidadania se afasta, tornando-se apenas discurso.
A atuação do Mutirão Jurídico do INW, que oferece orientação gratuita com advogados especializados em comunidades parceiras, é uma das respostas concretas a esse desafio. Contudo, o INW não está sozinho nessa missão. Instituições como o Instituto Pro Bono e o Instituto de o à Justiça também exercem papéis fundamentais, mostrando a corresponsabilidade do Terceiro Setor na promoção do o à Justiça, em parceria com o Estado.
Segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua – o à Justiça, realizada pelo IBGE em parceria com o PNUD, apenas 10% da população brasileira já procurou a Defensoria Pública em algum momento (BRASIL, 2019). Diante desse cenário, o relatório Justiça em Números 2024, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), apontou que quase 50% das demandas judiciais concentram-se na Justiça Estadual, especialmente nas áreas de consumidor, saúde, família e previdência (BRASIL, 2024). Soma-se a esse contexto o alarmante crescimento de casos pendentes na Justiça, que aram de 8,6 milhões em 2020 para 11,7 milhões em 2023 — um aumento de 35,5% em três anos. Desse total, 6,9 milhões (58,7%) pertencem à Justiça Estadual e 4,8 milhões (41,3%) à Justiça Federal, com destaque para o acréscimo de 2,5 milhões nos Juizados Especiais Federais (JEFs).
Ao retomarmos a provocação do ministro Herman Benjamin, a questão intensifica-se diante de casos socialmente sensíveis, nos quais o o a um advogado(a) já é um obstáculo, e a figura do defensor (a) público muitas vezes representa a única chance de atuação. Mesmo assim, temas urgentes que impactam milhões raramente alcançam os tribunais superiores, onde a atuação exige capacidade técnica, tempo e estrutura financeira para sustentar uma demanda até Brasília. Os altos custos processuais e logísticos acabam funcionando como um filtro perverso que decide, na prática, quais causas alcançam os tribunais superiores.
O ministro reforçou a importância de buscar ferramentas para democratizar o o e utilizar a tecnologia para fomentar a discussão. É urgente reduzir os abismos entre quem aplica e quem a a Justiça, e entre quem a e quem permanece distante dela.
Portanto, a pergunta “Justiça para quem?” não apenas provoca, ela denuncia. E nos desafia, enquanto operadores e defensores do Direito, a construir respostas que não se restrinjam ao discurso, mas avancem na efetivação das prerrogativas da cidadania e no fortalecimento da democracia. O Terceiro Setor tem papel crucial nessa virada: transformar o direito previsto em direito vivido.
*A opinião dos colunistas não reflete, necessariamente, a opinião do Observatório do Terceiro Setor
Sobre a autora: Anne Wilians é advogada, a e mestranda em Direito Difuso e Coletivo pela PUC-SP. Especialista em Gestão da Inovação Social, fundou o Instituto Nelson Wilians (INW), que preside atualmente. Lidera iniciativas voltadas à promoção da justiça social, à educação cidadã e à cultura da legalidade.