Herança psicológica dos traumas de guerra – o sofrimento que une judeus e palestinos

Por Rodrigo Fonseca Martins Leite
O mundo não teve direito à trégua – Como que num vaticínio histórico, após a peste sobrevém invariavelmente a guerra. A tragédia coletiva da pandemia pela COVID-19 ainda não havia cicatrizado quando irrompeu o conflito Rússia-Ucrânia no início de 2022. Em 07 de outubro último, o ataque terrorista do Hamas – considerado o mais grave atentado contra cidadãos Israelenses de toda a história – explode mais uma guerra violenta cujas consequências locais e mundiais ainda são imprevisíveis.
Vivemos num mundo representado pelo acrônimo BANI: traduzido do inglês como frágil (brittle), ansioso (anxious), não-linear (non-linear) e incompreensível (incomprehensible). Podemos afirmar que a mente humana, prototipada na Pré-História, anda exausta de tanto estímulo. Afinal, todo conflito, problema ou tragédia é amplificada pelas mídias sociais.
Desta maneira, alguns estudos trazem que, mesmo indivíduos distantes das cenas de guerra, podem desenvolver sofrimento psicológico de modo indireto. A exposição à cenas violentas ou bárbaras, pode gerar este desconforto ou pior ainda, a dessensibilização e a perda de empatia. Quando a exposição ao trágico é maciça e contínua, nada mais nos toca ou gera compaixão.
Somando-se a isso, a polarização agrava a tensão psíquica na sociedade pois qualquer tema torna-se polarizável – do uso de vacinas ao conflito Israel-Palestina – gerando tempestades tóxicas de opiniões e narrativas, sempre convenientes para a má-política.
Estudos com sobreviventes do Holocausto Nazista apontaram que o sofrimento mental sob a forma de depressão, somatização ou estresse pós-traumático atingia a próxima geração.
Em outras palavras, os filhos dos sobreviventes, que não vivenciaram os horrores da guerra no corpo e na alma, se tornavam mais vulneráveis ao estresse e com maior risco psiquiátrico ao longo da vida. Os fatores relacionados eram a ocorrência de uma “conspiração de silêncio” e comunicação familiar fragmentada. Negar o trauma como se ele não tivesse existido piorava o problema.
Algo parecido também foi demonstrado nos estudos de trauma em Palestinos. Igualmente submetidos à inúmeras catástrofes coletivas, apresentavam desconfiança do mundo, tristeza crônica, inabilidade para expressar emoções, apreensão constante, rancor, entre outros afetos negativos. Desta forma, gera-se um legado de sofrimento mental ao longo de gerações. Gente sofrida produz sofrimento.
Em ambos as situações, o fator mais decisivo na interrupção da transmissão intergeracional do trauma foi a possibilidade de se comunicar de maneira clara, respeitando o perfil, o amadurecimento e a capacidade de entendimento das crianças e adolescentes. Importante ressaltar que muitas famílias conseguiram lidar positivamente com as tragédias históricas no sentido de fortalecer a resiliência e os valores culturais, religiosos e políticos.
Tragicamente, ainda estamos muito distantes de qualquer perspectiva de paz mas podemos celebrar a inegável contribuição cultural, social e histórica destes povos. Independentemente das lutas territoriais e religiosas e da barbárie do terrorismo e da guerra, há um laço humano que nos une: o legado para as futuras gerações.
A herança resiliente da civilização, construída através de milênios é a única chance de sobrevivência para toda a espécie.
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*A opinião dos colunistas não reflete, necessariamente, a opinião do Observatório do Terceiro Setor.
Sobre o autor: Rodrigo Fonseca Martins Leite é médico psiquiatra pelo IPq HCFMUSP, mestre em políticas públicas e serviços de saúde mental, produtor da mídia social “psiquiatra da sociedade”.