Expectadores da política
Nós aqui e eles lá! É este o sentimento geral da população com relação à política brasileira. Independente da coloração partidária e do matiz ideológico, o único ponto em que a maioria da população parece concordar é que há uma completa cisão entre política e povo, representantes e representados, legisladores e legislados, políticos e população, governantes e governados.
Nos últimos meses não faltaram temas extremamente relevantes ao país e que mereciam um amplo debate público, que foram, ou ainda estão sendo, definidos pelos poderes legislativo e executivo. Na esfera federal destacam-se os cortes no orçamento da União, a flexibilização do trabalho terceirizado, o financiamento empresarial de campanhas eleitorais, a redução da maioridade penal e um novo sistema de demarcação das terras indígenas; na esfera estadual é a renovação da outorga do Cantareira e todo o modelo de gestão da água, e a falta de transparência no acompanhamento das investigações das chacinas cometidas pela Política Militar de São Paulo, que se sobressaem no governo paulista – além da desastrosa condução da crise política e fiscal no governo gaúcho; e, na esfera municipal, são os Planos de Educação que merecem evidência – só para ficar em alguns exemplos. O que há em comum na condução de todos estes temas e debates é a surdez retumbante, a prepotência crônica e a covardia típica da “classe política”.
Por mais que as instâncias de participação e consultas à população tenham crescido vertiginosamente nos últimos anos – só na esfera federal, entre 2003 e 2014, foram realizadas 98 Conferências Nacionais que trataram de 43 políticas públicas e temas distintos, e de 2003 a 2013 foram criados 19 novos conselhos e 16 foram reformulados, sem contar as instâncias participativas criadas nos estados e municípios –, fica a dúvida com relação a quanto de toda essa “engenharia participativa” pavimenta o caminho para um real exercício da soberania popular.
O parágrafo único do Art. 1º da Constituição Federal de 1988 afirma com todas as letras: “Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”.
Porém, na realidade não é assim que a banda toca. No Brasil da prática a teoria é diferente, e tudo o que está no papel pena para se tornar realidade. Mesmo com todos os avanços trazidos pela Constituição de 1988, o povo continua a ser mero expectador da política e a participação continua sendo coisa de governo.
Se a população está excluída da política, não é por acaso. Se os governos são, na realidade, impermeáveis aos anseios populares, na outra ponta da equação isso garante o espaço necessário para que as instituições públicas sejam apropriadas pelo poder econômico e o povo seja submetido à dominação do mercado.
Um ponto fundamental desse quadro de déficit de soberania popular é a crise de representação política. Hoje ela é um dado, um fato, e é incomum – para não falar impossível – encontrar uma palavra, análise ou reflexão na sociedade brasileira que diga o contrário, ou que aponte para a qualidade da representação política.
A crise de representação é notória. Ela advém de uma série de fatores, mas certamente o mais danoso e estrutural para cindir representante e representado é o financiamento empresarial de campanhas eleitorais.
Esse tipo de financiamento privatiza a política. Estudo do Instituto Kellogg, da Universidade do Texas, nos Estados Unidos, indica que as empresas brasileiras que doam dinheiro para campanhas eleitorais têm um retorno por meio de contratos, licitações, obras públicas e legislação favorável, de até 850% em cima do valor que investiram no candidato(a). Para cada R$ 1,00 doado em campanhas o retorno em benefícios e licitações é de R$ 8,50. Isso mostra que o sistema de financiamento de campanhas é altamente lucrativo, e, logo, corrompido. Os empresários querem corromper, e os políticos querem ser corrompidos. E isso permeia praticamente todos os partidos políticos, governos e mandatos legislativos.
E o negócio além de altamente lucrativo é também oligopolizado. Um interessante estudo do Instituto Ethos demonstra o comportamento das empresas nesse aspecto. Segundo o estudo, com base em dados do TSE, cerca de 20 mil empresas costumam doar a campanhas eleitorais. Porém, apenas 1% deste total – 200 empresas – realiza cerca de 60% das doações. Do outro lado do balcão, os 1,5 mil deputados(as) federais, distritais e estaduais e senadores(as), eleitos(as) em 2014, gastaram nas campanhas eleitorais cerca de 30% mais do que a soma das despesas dos 13 mil candidatos(as) não eleitos(as). Na média, esses(as) candidatos(as) eleitos(as) gastaram 11 vezes mais do que os(as) não eleitos. E essa dinâmica se repete também nas eleições estaduais e municipais.
Isso nos faz entender que é uma minoria de empresas que doa a campanhas eleitorais, e em valores muito concentrados, assim como também é uma minoria de candidatos(as) que recebem essas vultosas quantias. Contudo, é essa minoria eleita por essa minoria que financia que se tornam os representantes de todo o povo brasileiro nas casas legislativas (Congresso Nacional, Assembleias Legislativas e Câmaras de Vereadores), defenestrando qualquer possibilidade de representação política da população.
O resultado disso não poderia ser diferente. Apenas como exemplo, nas eleições de 2014 para a Câmara dos Deputados, apenas 10 empresas ajudaram a eleger 70% dos(as) candidatos(as) vitoriosos(as). Em resumo, 7 em cada 10 deputados(as) federais (quase a totalidade) devem – e assim o farão – favores a apenas 10 empresas. Então, assim comprados e corrompidos, não há outra afirmação a ser feita que não a de ser um fato que temos nas casas legislativas de todo o país um conjunto de representantes que não representam absolutamente ninguém, a não ser seus interesses particulares e os das empresas e grupos que os(as) financiaram.
A crise de representação política – com base de sustentação no financiamento empresarial de campanha –, então, reforça a dinâmica em que o povo é mero expectador da política, agudizando o foço entre representante e representado, e aprofundando o déficit de soberania popular.
Soma-se à questão da crise de representação política o problema da falência dos partidos políticos. Sua relação com a vida cotidiana da população é nula. Em pesquisa recente da Confederação Nacional de Transporte (CNT), em parceria com o instituto MDA, aponta que mais de 70% da população não confia nos partidos políticos. Da mesma forma, pesquisa do Data Folha do início do ano registra que 71% da população não tem preferência por nenhum partido político. E ainda, uma parcela de 70% da população não sabe em quem votou pra deputado nas últimas eleições.
A falta de identificação da sociedade com os partidos é patente. Nas mais de 30 legendas partidárias inexiste uma adesão da população a um discurso partidário, que, salvo raríssimas exceções, é fraco, superficial e incapaz de apresentar um projeto robusto e aglutinador de país.
São hoje pífios 7% da população brasileira filiada a partidos políticos. Se pensarmos destes quantos são verdadeiramente atuantes na política, seja na militância, seja nas campanhas, esse número pode cair pela metade, o que poderia figurar um valor de praticamente 3% da população.
Com um discurso antigo e práticas arcaicas, os partidos políticos abraçam a obsolescência de um sistema político viciado, elitista e sem solução se não houver reformas estruturais.
O perigo desses dados é justamente o de serem os partidos políticos a base da democracia. Sem eles não se pode haver uma democracia robusta, plural e igualitária. Quanto mais fraco os partidos políticos, mais forte o poder econômico. E vice-versa.
Junta-se, ainda, à crise de carisma, identificação, sentido e diálogo com a sociedade, por parte dos partidos políticos – corroborando, estes, ou não –, a completa falta de credibilidade das instituições políticas. Na mesma pesquisa da Confederação Nacional de Transporte (CNT), as instituições menos confiáveis na opinião da população brasileira são os partidos políticos (0,1%), seguida do Congresso Nacional (0,8%) e governo (1,1%).
Não obstante, além da crise de representação política, da falência dos partidos e da ausência de credibilidade das instituições políticas, é fundamental destacar também, nesse caldo de déficit de soberania, a ausência (ou travamento) dos mecanismos de democracia participativa.
No parágrafo único do Art. 1º da Constituição Federal de 1988 está posto que todo poder emana do povo DIRETAMENTE, ou por meio de seus representantes. E no Art. 14 essa participação direta é caracterizada pelos mecanismos constitucionais: Plebiscitos, Referendos e Leis de Iniciativa Popular. Mas vejamos…
Sobre os Plebiscitos e Referendos, por mais que sejam mecanismos de participação direta, é interessante notar como escondido no Art. 49 da Constituição fica ao Congresso Nacional a prerrogativa de autorizá-los e convocá-los, e essa lógica se repete nas Constituições Estaduais e nas Leis Orgânicas dos Municípios. Ou seja, essa participação direta não é tão direta assim. Pois é o Congresso Nacional, as Assembleias Legislativas e as Câmaras de Vereadores – as mesmas instituições que vimos acima como são sequestradas pelo poder econômico – que autorizam e definem sobre o que o povo pode ou não ser consultado.
Quer dizer, então, que são os representantes que definem se o povo exercerá, ou não, seu poder diretamente, e não o contrário, o povo decidindo diretamente sobre o que seus representantes podem, ou não, decidir. Pois então, com o proposital travamento desses mecanismos de participação direta o que decorre é o fenômeno de extinção da democracia participativa pelas mãos da democracia representativa. Este fenômeno pode ser também caracterizado de diversas formas: a representação virtual inutilizando a participação real; a classe política dominando o povo; a ilegitimidade abnegando a legitimidade; ou ainda a soberania popular operando ilegalmente nas mãos dos representantes do empresariado. Em suma, na prática são os anseios populares reprimidos pelas demandas particularistas dos donos do Estado. Ou, em termos claros, mais uma expressão brutal daquilo que podemos chamar de ditadura de classe, pois o Estado pertence às elites. Nada de consultar o povo!
Já com relação aos Projetos de Lei de Iniciativa Popular, estes necessitam de s de, no mínimo, 1% do eleitorado nacional – o que representa cerca de 1,5 milhão de s – distribuídas em pelo menos cinco estados brasileiros, com não menos de três décimos por cento dos eleitores de cada um deles.
Porém, não esqueçamos duas coisas. Primeiro, que para ser criado um partido político é preciso obter a de 101 fundadores – distribuídos por pelo menos nove estados – para registrar o partido. E, em seguida, registrada a legenda no Tribunal Superior Eleitoral (TSE), é preciso obter apoio, por meio de s, da quantidade de eleitores correspondente a 0,5% dos votos dados na última eleição a toda a Câmara dos Deputados, descontado votos brancos e nulos – o que representa cerca de 500 mil s. Segundo, que o maior quociente eleitoral para eleição pra deputado federal em 2014 foi de 300 mil votos.
Ou seja, para conseguir “validar” uma Lei de Iniciativa Popular é necessário o mesmo número de s (1,5 milhão) equivalente à fundação de três partidos políticos, ou, à eleição de cinco deputados federais. Ou, em outras palavras, a participação direta da população na elaboração de leis é três vezes mais difícil que criar um partido, e cinco vezes mais complexa que eleger um deputado federal. E isso sem contar que o partido, quando criado, a a existir imediatamente, com direito a Fundo Partidário e tempo de televisão e rádio; e o deputado(a) eleito(a) é diplomado após algumas semanas da eleição. Mas, pasmem, quando entregue, a Lei de Iniciativa Popular tem que ter suas 1,5 milhão de s conferidas uma a uma, e, se a aferição considerá-las idôneas, ela ainda deve ser protocolizada junto à Secretaria-Geral da Mesa Diretora, e seguir os trâmites do Regimento Interno da Câmara dos Deputados.
Assim, como no caso dos Plebiscitos e Referendos, a dinâmica de aprovação de um Projeto de Lei de Iniciativa Popular – a terceira forma de democracia participativa definida pela Constituição Federal – expressa a tutela da classe política sobre os anseios populares. Expressa a clara privatização da política. Expressa a impermeabilidade do Estado às demandas do povo, a supressão da democracia participativa pela democracia representativa, e a ruptura entre sociedade e política. Pode fazer política somente os políticos, o povo não.
Concluindo, não faltam elementos para afirmarmos com todas as letras que no Brasil os mecanismos de democracia participativa estão obstruídos, travados, s, subutilizados e negados, imoral e ilegalmente pelo Estado, ou melhor, pela elite que detém o Estado. Financiar e comprar deputados, senadoras, governadores e prefeitos, pode. Opinar, incidir na tomada de decisão, participar diretamente, priorizar o orçamento público e construir leis, não pode!