Então é Natal e o que você fez?

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Trilha sonora para ler este texto: Happy Xmas, John Lennon

Estamos às vésperas das festividades de final de ano e todos os meios de comunicação fazem campanhas publicitárias exaltando o melhor do ser humano. Em quase todos os comerciais as pessoas se amam, compartilham uma ceia farta e trocam presentes de bom gosto.

Nem entrarei sobre os efeitos psicológicos que este período do ano causa nas pessoas, pois comentei sobre saúde mental na coluna ada e não quero fazer o papel de Grinch amaldiçoando as festas e alegrias alheias. Esta época do ano não me traz as melhores recordações e com o ar do tempo percebi que este sentimento é compartilhado com mais pessoas do que eu imaginava. No entanto, com o ar do tempo também percebi que esta é uma época muito importante para um outro mundo de pessoas e existem aqueles que realmente apreciam as festividades. Em resumo, se você se sente triste e melancólico(a) neste período, saiba que não é o(a) único(a) e que as redes sociais estão recheadas de hipocrisia alheia; e se você se sente feliz e tem a oportunidade de ar com pessoas realmente importantes, reconheça quão privilegiado(a) você é e aproveite cada segundo destes dias!

Atualmente o que me mais me incomoda nestes dias é a quantidade de campanhas filantrópicas que surgem em todos os lugares. De repente, todas as pessoas lembram que existem pessoas pobres neste mundo.

E aqui dedico uma explicação prévia. Não estou a defender o fim das campanhas de solidariedade de final do ano, mas o que me incomoda é que muitas delas só existem neste período do ano e não promovem uma continuidade para efetivar uma real mudança na vida das pessoas. Muitas delas desconsideram totalmente a autonomia e a capacidade de seus destinatários, pois já estabelecem o que vão doar, quem vai receber, quando vai receber e quem merece receber.

Trabalhei por um longo período com pessoas que vivem nas ruas. Aliás, observar e conviver com a precariedade dos serviços destinados à população de rua me levou a escrever meu mestrado e doutorado sobre o tema e acredito que posso falar sobre isso com um pouco mais de propriedade. Ao conversar com estas pessoas aprendi muito e confesso que muitas delas mudaram a minha vida – de verdade! Na maior parte das falas, percebi o quanto elas se sentem desvalorizadas pela precariedade dos projetos que são destinados a elas. Escutei um sem contar de vezes as pessoas reclamando da quantidade de coisas que recebem sem nunca terem sido consultadas. “A sociedade subestima a nossa capacidade. As pessoas esquecem que somos seres humanos com vontade própria. Eu vejo que nós (população de rua) somos as cobaias na mão dos outros, cada um aparece e faz o que quer sem perguntar do que realmente estamos precisando”. Esta foi uma frase que anotei em um dos meus cadernos de campo quando fazia ouvidoria comunitária em espaços de atendimento a este público e que me fez refletir a respeito.

Toda vez que alguém me procura para falar de alguma campanha de filantropia ou doação eu pergunto o que motiva a pessoa para participar daquele projeto. Costumo sempre recomendar o filme “Quanto vale ou é por quilo?”, de 2005, dirigido por Sérgio Bianchi. Acho que o mais importante é que todos tenham bem claro qual a motivação para se envolver nas causas sociais. Causas sociais devem almejar o bem coletivo e não servir para amaciar o ego próprio. Este filme traz histórias de pessoas que trabalham em associações e que estão envolvidas em projetos pelos motivos errados, ou que, em razão da precariedade das condições de trabalho na associação, não conseguem oferecer um serviço que realmente promova a cidadania dos seus destinatários. Também toca no ponto mais nevrálgico da sociedade brasileira: a desigualdade social entre ricos e pobres e como nosso histórico de escravidão contribuiu para esta realidade e a institucionalização do racismo.

Aos 50 e poucos minutos, o filme apresenta um dado interessante. Na época em que foi filmado, foi estimado que as atividades envolvendo associações dedicadas a promover os direitos das crianças e dos adolescentes no Brasil movimentava aproximadamente 10 milhões por ano. No entanto, parte deste dinheiro era destinado para prioritariamente manter estas associações funcionando. Em média, cada criança carente no Brasil correspondia à criação de cinco novos postos de trabalho. Em 2005, foi aferido que existiam 10 mil crianças carentes no Brasil. Se o dinheiro destinado para estas instituições fosse direcionado diretamente para estas crianças, cada uma delas poderia contar com 10 mil dólares ao ano, significa dizer que cada criança poderia, na época, comprar um pequeno apartamento a cada dois anos ou pagar uma bolsa de estudos numa escola particular até se formar na faculdade. Este argumento merece a nossa reflexão. O que pode interferir na vida de uma criança: brinquedos doados na época de Natal ou uma bolsa de estudos até a faculdade?

Contra-argumentando estes dados, sei que enquanto não existe um sistema de redistribuição de renda institucionalizado pelo governo por meio de políticas públicas que promovam a cidadania, não temos alternativa a não ser contribuir com campanhas de solidariedade. Ademais, é preciso manter uma estrutura mínima istrativa para destinar o que quer que seja para estas pessoas. Não vamos extinguir as campanhas que existem, porque elas promovem um mínimo de felicidade na vida tão cinza de milhões de brasileiros, mas é importante começarmos a pensar além e iniciarmos uma efetiva mobilização de combate à desigualdade social que assola nosso país.

Sempre procuro mencionar um artigo da Declaração Universal de Direitos Humanos para consolidar valores acordados por um número considerável de países deste mundo há décadas. A igualdade social é parte deste rol de direitos estampados na Declaração. Direitos sociais são parte integrante das garantias mínimas que os Estados e a sociedade precisam almejar para o pleno desenvolvimento das pessoas. O artigo 22 prevê que “toda a pessoa, como membro da sociedade, tem direito à segurança social; e pode legitimamente exigir a satisfação dos direitos econômicos, sociais e culturais indispensáveis, graças ao esforço nacional e à cooperação internacional, de harmonia com a organização e os recursos de cada país”. E em continuidade à efetivação dos direitos sociais, o artigo 25 estabelece que “toda a pessoa tem direito a um nível de vida suficiente para lhe assegurar e à sua família a saúde e o bem-estar, principalmente quanto à alimentação, ao vestuário, ao alojamento, à assistência médica e ainda quanto aos serviços sociais necessários, e tem direito à segurança no desemprego, na doença, na invalidez, na viuvez, na velhice ou noutros casos de perda de meios de subsistência por circunstâncias independentes da sua vontade”. Vale lembrar que o Brasil se comprometeu com estes valores e garantiu estes direitos sociais mínimos no texto constitucional.

Quando vivemos em uma sociedade em que nem todas as pessoas am o nível mínimo de vida para assegurar o próprio bem-estar, devemos reconhecer que vivemos em um país que viola direitos humanos. Ser solidário e ter atitudes que garantam um nível mínimo de dignidade a todos não é escolha, mas dever. Meu argumento principal é que além de o Estado ter que se comprometer com políticas que promovam a igualdade social, nossos atos também devem ir além do viés da filantropia.

Recentemente assisti ao filme sul-coreano chamado ‘Parasita’, que ilustra muito bem essa divisão de realidade entre ricos e pobres e como somos todos responsáveis pela manutenção desse status quo. Dirigido pelo sul-coreano Bong Joon-ho, o filme está sendo aclamado pela crítica internacional especializada na sétima arte por ter sido o primeiro longa sul-coreano a conquistar a Palma de Ouro com decisão unânime pelo júri, fato quase inédito na história do festival. É também o mais forte candidato a ganhar o Oscar de 2020 na categoria de melhor filme estrangeiro.

A genialidade de ‘Parasita’ está na complexidade de seus personagens e na sutileza de detalhes. O filme é a narrativa da relação de uma família rica, composta por um pai, uma mãe, uma filha adolescente e um filho criança, com os empregados da casa, que são o motorista, a governanta, a professora para o filho mais novo e o professor para a filha mais velha. Todos os empregados são parte de uma outra família que vive nos porões de uma casa em um bairro pobre da cidade. Para além do maniqueísmo, o filme retrata a complexidade do ser humano, mostrando o lado bom e ruim das pessoas, mas é uma crítica bem profunda sobre a desigualdade social. Quase todas as situações vivenciadas pelos personagens demonstram esta dualidade. Até a relação com a chuva serve como elemento para demonstrar a diferença social: enquanto que uma noite chuvosa para os ricos é tida como uma vantagem para manter a qualidade do ar e diminuir a poluição da cidade, para os pobres representa toda a desgraça da inundação das casas que não possuem estrutura e a perda de quase todos os seus bens em poucas horas.

Outra situação que demonstra a sutileza desta relação consiste quando a família rica está retornando para casa tarde da noite. A mãe liga para a governanta e pede que seja preparado um prato tipicamente sul-coreano que envolve dois tipos de macarrão (noodle) e diz para incluir uma carne (korean beef) que é um ingrediente mais caro. Ao chegar em casa, a mãe começa a jantar e pede para a filha comer com ela. A filha diz não estar com fome e a mãe, ao perceber que o prato continha o ingrediente caro, decidi comer tudo sozinha a ter que dividir com a governanta. A cena não é tão óbvia assim e eu só me atentei a este detalhe depois de ler uma crítica sul-coreana sobre a existência deste prato típico e a diferença de valor monetário quando há adição da carne. Durante o preparo, a câmera foca diretamente no corte da carne e este é o único momento em que a governanta tem contato com este alimento.

É neste ponto tão sutil do filme que me faz lembrar de algumas das campanhas de final de ano que estou a criticar. O que estamos compartilhando é apenas o macarrão ou o macarrão com carne? Estamos engajados em campanhas que promovem direitos ou que perpetuam uma relação de subserviência? Quando temos produtos melhores, temos a mesma disposição para partilhar?

O embate entre filantropia e cidadania não é recente, é um debate histórico travado no campo da assistência social desde, principalmente, a década de 1990, quando da discussão a respeito do desenvolvimento do sistema único da assistência social no Brasil (que acabou se materializando por meio da Lei Orgânica da Assistência Social – Lei nº 8.742/1993). Para aqueles que são contrários a programas como o Bolsa Família e afirmam ser uma criação do governo Lula, talvez não tenham uma boa memória, pois muitos dos programas sociais foram implementados ainda durante o governo de Fernando Henrique Cardoso e aprimorados nos mandatos subsequentes. Aliás, a ex-primeira dama Ruth Cardoso foi uma das personagens que contribuiu para o debate na época e para implementação de vários destes programas sociais. Nomes como Luiza Erundina, prefeita na cidade de São Paulo entre 1989 e 1993 e atual deputada federal, Aldaíza Sposati, vereadora da cidade de São Paulo entre 1993 a 2004, foram e ainda são referências na defesa da causa e na luta pelos direitos sociais e desenvolvimento de políticas nesta área.

Quando falo em mobilização, penso que são diversas as frentes em que podemos – e devemos – atuar. Em primeiro lugar, quando exercemos nosso direito ao voto. Realmente fico desolada quando escuto alguém afirmando que pretende anular o voto por não existirem candidatos decentes. Não por acaso citei Luiza, Aldaíza e até mesmo Fernando Henrique Cardoso, que foram personagens que contribuíram, cada qual do seu modo, para a existência de políticas voltadas ao campo social. Sempre existiram, e ainda existem excelentes pessoas envolvidas na vida política do país, que colaboraram para o desenvolvimento e concretização de direitos sociais. E foi por causa destas pessoas que não estamos em uma situação pior. Por isso, afaste seu sentimento de desilusão pela política brasileira, deixe a preguiça de lado e faça uma pesquisa breve sobre os planos de governo na próxima eleição que houver.

Em segundo lugar, penso no real envolvimento com causas sociais. Se você faz uma doação para alguma causa, você acompanha as atividades da entidade durante o ano? Você sabe qual é a proposta do estatuto social dela? Você sabe se é possível contribuir de outros modos além de um montante em dinheiro? Por exemplo, se você é advogado(a), você sabe dizer se poderia oferecer seus conhecimentos na área jurídica para fazer com que esta entidade organize a sua burocracia em relação aos certificados para poder contar com outras fontes de custeio e ampliar sua atuação? Ou se você é comerciante, pode oferecer seus conhecimentos sobre fluxo de caixa e auxiliar na organização de suas receitas e despesas? Ou qualquer que seja sua habilidade. O mais importante é saber se comprometer com instituições que realmente são sérias com seus propósitos e pensar numa forma de contribuição que traga resultados melhores.

Em terceiro lugar, qual é a sua relação com as pessoas que cercam você? Se você tem empregados(as), seja uma pequena empresa, na sua casa ou no seu condomínio, como você se comporta em relação aos direitos deles? Se você é a favor, na assembleia do seu condomínio, pela terceirização da segurança do seu prédio, talvez valha a pena refletir sobre a precarização da mão de obra destes empregados e como eles são mal remunerados. E se você não se sensibiliza com isso por questões humanitárias, lembre-se que é exatamente esta pessoa a responsável pela sua segurança e de sua família. Se você tem uma empregada doméstica, você oferece um bônus de Natal? Lembre-se que esta pessoa tem despesas como você no final do ano. Se você é empresário e o nosso atual presidente decide desobrigar empresas a observarem cotas para pessoas com deficiência, exerça a sua cidadania e contrate o dobro de pessoas com deficiência. De nada adianta doar cadeiras de roda para uma instituição, se não garantimos a presença de pessoas com deficiência em postos de trabalho. Aumente os meses de licença maternidade para suas empregadas. Contrate mais mulheres. Faça a pequena revolução ao seu redor. Há muito que podemos fazer sem a necessidade de uma lei nos obrigando. Ética não precisa estar escrita num pedaço de papel para fazer parte das nossas atitudes.

No mais, desejo boas festividades a todos e que muito melhor que o sentimento de satisfação ao participar de uma campanha solidária de final de ano é o sentimento de viver em uma sociedade em que pessoas não am fome nos demais dias do ano.

*A opinião dos colunistas não reflete, necessariamente, a opinião do Observatório do Terceiro Setor.

Luciana Marin Ribas

Doutora em Direitos Humanos pela Universidade de São Paulo, Mestra em Direito Constitucional pela PUC-SP, onde também se graduou em Direito. Pesquisadora da Clínica Luiz Gama de Direitos Humanos da USP, dedica-se ao estudo de temas envolvendo educação em direitos e exercício da cidadania.

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