Em Porto Alegre, professora une brincadeira ao ensino da história negra
A professora Perla Santos criou um jogo de cartas para apresentar figuras da história afro-brasileira aos seus alunos do ensino fundamental

Por: Mariana Lima
Hoje, a professora Perla da Silva dos Santos, de 38 anos, não consegue se ver longe das salas de aula. Mas nem sempre foi assim.
A professora que trabalha para transformar a vida dos alunos do 5º ano da Escola Municipal de Ensino Fundamental (EMEF) Lidovino Fanton, no bairro Restinga Velha, na periferia da cidade de Porto Alegre (RS), cresceu vendo o ambiente escolar como um espaço de revolta.
Criada em uma região periférica, quase sem espaços de cultura, lazer e educação, Perla encontrava poucos incentivos para se dedicar aos estudos.
“Não conseguia me identificar com a escola porque era um lugar que mostrava todas as minhas fragilidades, o que eu não sabia, as minhas limitações. Isso me deixava na defensiva, porque não era um ensino acolhedor. Eu gostava muito de escrever, era o que me permitia colocar tudo para fora. Mas na escola esse prazer na escrita sumia”, conta.
As coisas só mudaram quando o professor de literatura, Hugo de Souza, veio com uma nova estrutura de ensino: dar liberdade para os alunos. “Ele criava todo o cenário para que a gente construísse nossas produções textuais. Não impunha um tema, um modelo a seguir. No começo, eu me sentava no fundo e debochava de tudo porque pra mim era só mais uma forma de expor o que eu não sabia”.
Um dia, o professor Hugo chamou Perla para conversar. “Eu já esperava uma crítica porque a lógica da escola é a crítica, falar que não tá bom. Mas aí ele me disse: ‘é uma honra para mim ter uma aluna como tu. Achei lindo o que tu escreves’. Eu nunca tinha ouvido isso antes. Naquele momento alguém olhou para mim, me notou como pessoa e não como um número na chamada”, relembra.
Transformações do olhar
Foi por intermédio do professor Hugo que Perla descobriu a presença de figuras negras fora da pobreza, violência e vulnerabilidade, que ela acreditava ser a sina da pessoa negra e periférica.
O primeiro contato foi com o poeta e militante negro Oliveira Silveira (1941 – 2009). Seguindo as orientações do professor Hugo, Perla foi até a casa de Silveira para mostrar seus escritos.
“Eu nem sabia quem era, porque nunca tinha ouvido falar de escritores negros. Ele morava em um condomínio e eu estava morrendo de medo de mostrar meus escritos. Anotei meu número dentro do caderno e pedi para o porteiro entregar”, relembra aos risos.
E uma ligação veio. Silveira queria saber o porquê de a menina deixar o caderno com ele. Quando ouviu a história de Perla, quis conhecê-la.
“Ele me ensinou a história e cultura da nação negra, coisas que eu nunca havia imaginado. Depois desse encontro, fui mudando como aluna. Tive vários professores, mas apenas eles dois me enxergaram. E hoje, eles continuam vivos comigo e com os meus alunos”, afirma.
Perla, a professora do jogo de cartas
Após se formar no ensino médio, Perla se dividia entre bicos e o estudo para prestar concurso público. A meta era conseguir um emprego estável para se manter na universidade pública. O esforço deu resultados. Perla ou a dar aulas enquanto iniciava a formação na Universidade Federal do Rio grande do Sul (UFRGS), onde se licenciou em Dança.
Desde então, foram 14 anos de docência em seis escolas, todas em regiões periféricas. “Eu me vejo nessas crianças. Entendo as revoltas delas, porque também já fui essa pessoa”.
E Perla vem usando a criatividade para aplacar a revolta e mostrar as oportunidades possíveis para os seus alunos. Foi ao observar as crianças no recreio que ela percebeu o potencial do jogo do bafo para conseguir envolver os alunos nas aulas de história negra.
“Quando eu falava sobre Zumbi dos Palmares, eles só associavam aos zumbis dos filmes”. Perla então mudou de abordagem. Combinou com os alunos para que eles lhe ensinassem sobre o zumbi que conheciam em troca de ela ensinar sobre Zumbi dos Palmares.
“Aí consegui falar sobre Palmares. E resolvi usar a mesma lógica com o jogo do bafo. Enquanto eles me ensinavam a jogar, percebi que tinham estratégias, treinavam e explicavam bem. Então falei: vamos confeccionar as nossas cartas com essas figuras que estamos estudando”.
Mas a turma não acreditou muito na ideia da professora. “Para eles, coisas bonitas e bem-feitas não eram algo que poderiam fazer”. No final, Perla conseguiu convencê-los e logo todos estavam envolvidos na confecção das cartas para a competição na sala.
Foi durante a produção das cartas que Perla entendeu o porquê daquela brincadeira ser tão importante para eles. “Esses jogos mostram como eles são bons, que dominam alguma coisa. Eles querem ser desafiados para mostrar isso”.
Trabalhar a autoestima dos alunos é o que norteia o trabalho de Perla, que também coordena o projeto Movimento Meninas Crespas, que foca no cuidado com a menina e mulher negra.
A iniciativa começou em uma das escolas nas quais Perla lecionava, como uma forma de combater os impactos do bullying e do racismo contra as alunas negras. Agora, como projeto autônomo, Perla desenvolve as atividades junto com as mães das alunas.
“A docência é muito solitária, tu e seu aluno, porque é difícil desenvolver projetos com outros professores. Nesse projeto, é algo compartilhado e as mães me ajudam a enxergar as coisas que essas meninas precisam”, conta.
Os desafios de ser educador no Brasil
Apesar de saber a importância do trabalho que vem realizando, Perla não é imune aos efeitos dos ataques que eventualmente acabam chegando até ela.
“Já recebi mensagens nas redes sociais dizendo que eu merecia ser processada, de pais que não queriam que o filho tivesse aula comigo porque eu falava sobre negros. Isso me assusta, mas, mesmo com medo, eu sei que estou no lugar certo”, reforça.
Para ela, o cenário reflete a dificuldade em se fortalecer a implementação da Lei Nº 10.639/2003, que trata da obrigatoriedade do ensino da temática ‘História e Cultura Afro-Brasileira’.
“A lei, quando tá só no papel, não muda nada. Tivemos uma melhora ao longo desses anos, mas ainda existe uma ideia que cabe apenas ao professor negro fazer esse ensino. E tudo fica concentrado no 20 de novembro. O ensino da história e da cultura negra tem que ocorrer ao longo de todo o ano”, afirma.
Pandemia na sala de aula
Agora, lecionando para alunos do 5º ano do Ensino Fundamental II, Perla conta que o ensino remoto, proporcionado pela pandemia, criou uma distância entre professor e alunos.
“Este último ano foi muito ruim. Diversos alunos não tinham internet. Alguns vinham pegar as atividades, mas a gente não conseguia ter o contato adequado, dar o retorno que eles precisavam”, revela.
Perla viu pais que tiveram que vender o aparelho celular para conseguir garantir a comida em casa. A escola se mobilizou para reunir algumas doações, mas Perla reconhece que o cenário é difícil.
“É difícil não poder oferecer uma educação afetiva para alunos que têm todo esse histórico de rejeição, da falta do acolhimento em casa”, pondera sobre as aulas de forma remota.