Elis Regina e a psicose semiótica

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semiótica
Foto: Adobe Stock

Por Rodrigo Fonseca Martins Leite

Brasil. 1976. Elis Regina grava Belchior, até então um compositor cearense tentando acontecer no sudeste do país. A música “Como nossos pais” foi uma grande puxada de orelha na acomodação e ividade da juventude, similar à alienação bovina dos seus pais naqueles fatídicos estertores do “Milagre Brasileiro” e de uma ditadura carrancuda que insistia em não morrer.

Foi uma artista intensa e polêmica, dessas que não existem mais. Colecionou desafetos, mas a integridade da sua arte e a profundidade quase sobrenatural da sua entrega foram inalienáveis. Elis era um veículo das emoções de uma canção. Não haveria dissociação entre interpretação e mensagem num tempo em que letra era tão (ou mais) relevante quanto melodia, ritmo e harmonia.

Retornando para 2023, o conflito entre gerações – outrora o grande rito de agem, muitas vezes doloroso e disruptivo, mas necessário – perde sua importância. Grande maioria dos jovens não têm a menor vontade ou possibilidade financeira de romper com o conforto da casa dos pais. Este conluio de conveniências tem seu papel de blindagem afetiva: não sentir dor ou incômodo é uma tônica do momento numa busca incessante de Disneylândias que nos sorriam incondicionalmente.

Compreendo, até porque a vida anda bastante árida e solitária. Mas quando escolhemos não deixar o lado provocativo e desconfortável da arte nos tocar, perdemos a oportunidade de refletir criticamente. Esse enfraquecimento do pensamento crítico é a raiz de negacionismos e polarizações. Além disso, nos torna menos resilientes e mais vulneráveis ao sofrimento mental. A espécie humana precisa de cultura e arte para manter e exercitar a sua saúde mental.

Em tempos em que a inteligência artificial já começa a reescrever e subverter fatos e mensagens, nosso cérebro frágil e propenso à psicose se corrompe frente a falsidade dos desejos. Ledo engano. Daqui a pouco, a desregulação entre realidade e invenção será tamanha a ponto de desconfiarmos de nós mesmos. Segundo Yuval Noah Harari, a Inteligência Artificial hackeou o sistema operacional da espécie humana, pois danifica as raízes do pensamento através da manipulação da linguagem. E por estarmos falando sobre Elis, fica a dica de guardarmos amigos, discos e livros para a sobrevivência da identidade e memória humana.

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*A opinião dos colunistas não reflete, necessariamente, a opinião do Observatório do Terceiro Setor.

Sobre o autor: Rodrigo Fonseca Martins Leite é médico psiquiatra pelo IPq HCFMUSP, mestre em políticas públicas e serviços de saúde mental, produtor da mídia social “psiquiatra da sociedade”.


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