Direitos, democracia e governança responsável: como o setor social traz luz a questões negligenciadas

Cultura de Doação
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Imagem: adobe stock

 

Por Rebecca Tavares

Fundamental para a promoção da equidade de oportunidades, o setor social no Brasil viveu nas últimas quatro décadas uma série de mudanças e enfrentou desafios próprios a cada  momento de sua história, ampliando pouco a pouco sua atuação. Mas quando a filantropia ou a ser reconhecida como o instrumento capaz de apontar para questões negligenciadas, tanto pelo setor público quanto pelo setor privado?

Com a redemocratização do país, em 1985, a defesa dos direitos humanos e civis ganhou força e ou a focalizar segmentos da população historicamente excluídos e marginalizados. Esse processo foi impulsionado pelo fortalecimento da sociedade civil e pelo avanço de grupos representativos, como os movimentos feminista, negro e de luta pelos direitos dos povos indígenas e de pessoas com deficiência.

A partir daí, cristalizou-se no  imaginário social a noção de direitos, democracia e governança responsável. Esses novos grupos trouxeram à tona questões até então negligenciadas, como os direitos das trabalhadoras domésticas, que ficaram fora da Constituição de 1988 e apenas recentemente foram reconhecidos.

Sob o guarda-chuva dos direitos fundamentais, novas pautas foram incorporadas ao cenário da filantropia, como educação, meio-ambiente e visibilidade LGBTQIAPN+. Esse movimento serviu de base para a elaboração de políticas públicas e iniciativas do setor privado voltadas a práticas ambientais, sociais e de governança (ESG).

Diversas lutas marcaram essa trajetória, e seus resultados são visíveis. De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), no segundo trimestre de 2024, o nível de ocupação das mulheres no Brasil atingiu 48,1%, o maior patamar desde 2012, ao mesmo tempo em que elas também são maioria no ensino superior, representando 57% dos alunos matriculados em universidades. Já o número de empreendedores negros no país cresceu 22% entre 2013 e 2023, saltando de 12,8 milhões para 15,6 milhões, segundo levantamento feito pelo Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae).

Esses indicadores, no entanto, retratam uma realidade longe da ideal, e muito precisa ser feito para alcançarmos plena igualdade de raça e de gênero. Mulheres ganham, em média, 20,7% a menos do que os homens, aponta relatório do Ministério do Trabalho e Emprego; e a população negra e parda, embora majoritária, constitui apenas 16,4% dos estudantes de 18 a 24 anos no ensino superior, como mostra a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad Educação) de 2023.

A situação da comunidade LGBTQIAPN+, que representa 7% da população brasileira, segundo pesquisa do Datafolha, é ainda mais preocupante. Um estudo da plataforma To.gather junto a 300 empresas revelou que apenas 4,5% dos 1,5 milhão de postos de trabalho são ocupados por profissionais que se declaram LGBTQIAPN+, e esse número cai para 0,38% quando consideradas somente pessoas trans. Vale lembrar que, desde 2008, o Brasil é o país que mais mata transgêneros no mundo, segundo o Trans Murder Monitoring.

É nos momentos críticos, como na pandemia de COVID-19 e as enchentes no Rio Grande do Sul, que o setor social exerce plenamente seu papel de e indispensável ao poder público. Vimos nesses dois episódios uma mobilização expressiva da sociedade civil no apoio a comunidades vulneráveis e a famílias que perderam seus bens e fontes de renda. Embora essa mobilização reforce o caráter solidário do brasileiro, a filantropia emergencial nem sempre se traduz em apoio contínuo e estruturado, o que reforça a necessidade de se promover uma cultura que incentive doadores a investir em ações estratégicas e de longo prazo.

Por outro lado, os avanços no campo social também estimulam reações. A ascensão do ultraconservadorismo em todo o mundo, simbolizada pelo movimento “anti-woke”, que se opõe diametralmente a pautas progressistas, vem gerando grande impacto. Nos Estados Unidos, empresas têm recuado em suas políticas de diversidade e inclusão diante das pressões governamentais. Esse fenômeno, ao menos por enquanto, ainda não se manifestou tão fortemente entre as empresas daqui, mas já há sinais de risco de retrocessos no meio corporativo brasileiro.

O efeito dessa ofensiva ultraconservadora tende a colocar um freio na expansão e consolidação do setor social, e já é sentido por entidades que dependem de financiamento estrangeiro. A Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (USAID), que destinou mais de US$ 20 milhões para projetos no Brasil em 2024, congelou parte dos rees, seguindo orientação da istração estadunidense. A medida colocou em xeque diversas iniciativas voltadas à proteção ambiental e ao apoio a comunidades indígenas, além de afetar organizações menores que carecem de fontes alternativas para manter suas atividades.

Mas o movimento do setor social se realiza em ondas. Ao longo das últimas décadas, ele  se expandiu e foi decisivo na conquista de  garantias fundamentais. Agora precisa reafirmar seu compromisso com a igualdade e a justiça social em meio a incertezas e retrocessos. Por sua vez, as organizações sociais civis devem buscar novas estratégias para garantir a continuidade de programas essenciais, diversificando fontes de financiamento e consolidando redes de apoio. Mais uma vez, a história vai mostrar que o setor social no Brasil tem se adaptado continuamente ao espírito do tempo e que sua capacidade de resiliência tem sido crucial na luta pela defesa, conquista e manutenção de direitos fundamentais.

 

*A opinião dos colunistas não reflete, necessariamente, a opinião do Observatório do Terceiro Setor

 

Sobre a autora: Rebecca Tavares é CEO e presidenta da BrazilFoundation

 


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