Deus-dezembro e o feliz ano velho persistente

Por Rodrigo Fonseca Martins Leite
Dezembro costuma ser um mês que promete muito e entrega pouco. O frenesi das compras, do fechamento do trabalho, do trânsito apocalíptico sendo vivenciados através de mentes, corpos e almas já exauridos da luta deste ano e dos antecedentes. E além de tudo, a cobrança: somos obrigados a estar felizes e esperançosos.
Frequentemente não estamos à altura das tuas expectativas, Ó Deus-dezembro implacável! Somos o produto do que vivemos e a vida não está fácil para o Brasileiro. Nem para quem vive do seu trabalho; cada vez mais intensivo, abrasivo e pervasivo, nem para quem mora nas ruas, cada vez mais desumanizadas e maquiadas pelos políticos de ocasião.
Entretanto, outro aspecto contribui bastante para a violência dessa época festiva: O próximo ano se torna uma espécie de pai severo, perante o qual devemos nos regenerar dos pecados e prometer vida nova para si e para o mundo, começando todas as frases por: “Este ano, eu vou…, seguida de algum verbo imperativo. Lembre-se que se você não tem conseguido realizar algo, de perder peso á conseguir um novo emprego ou amor, é porque nada disso é simples e a vida é nada mais que uma sucessão de tentativas e erros que não se limitam ao ano burocrático de doze meses e 365 dias somados a magia do acaso.
O tempo cronológico não tem relação direta com o tempo psíquico de cada pessoa. Existem amadurecimentos que são mais rápidos, outros demoram décadas para frutificar e gerar mudanças de atitude duradouras. E mais ainda: existem ilusões a serem enterradas, que nunca serão realizadas. Isso inclui relações familiares, desejos profissionais, ganhos materiais…
Outro fantasma dos anos-novos é reencenar anos anteriores já falecidos. A nostalgia é uma perspectiva falida pois espera obter algo do que foi vivido, com as mesmas qualidades e colorido originais. Não é à toa que ao visitarmos lugares familiares da infância ou juventude, somos invadidos pela melancolia de perceber que tudo ou, se transformou ou pior, de que tudo “era melhor naquela época”. Atenção total para estas armadilhas que a memória cerebral nos cria, excluindo a parte ruim e selecionando as experiências positivas do ado. O que já morreu na sua vida? Esta pergunta não aumenta o consumo de antidepressivos entre os leitores mas leva-los a compreender que existe uma gama de potencialidades e novas formas de se viver que nem sequer imaginamos.
Luto é deixar o ciclo de morte e renascimento realmente nos surpreender com novas flores e frutos. E tudo morre: nós mesmos, famílias, empregos, vínculos, etc. É preciso deixar de buscar o futuro na reedição pálida do que já se ou. A natureza, sempre sábia, nos ensina -ou pelo menos nos ensinava antes da perversão climática – que temos quatro estações no ano.
O outono e o inverno como poda de folhas velhas das árvores, interrupção e hibernação e a primavera e o verão como florescimento, vibração e vida na sua expressão máxima. Que você consiga em 2024 e avante não ser escravo das expectativas, crenças psicológicas ultraadas, utopias das redes sociais ou do mundo quase perfeito da infância e encare a vida como os profissionais de teatro antes das estreias das peças: Que dê tudo errado para que dê tudo certo! O mundo é raso, largo e profundo.
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*A opinião dos colunistas não reflete, necessariamente, a opinião do Observatório do Terceiro Setor.
Sobre o autor: Rodrigo Fonseca Martins Leite é médico psiquiatra pelo IPq HCFMUSP, mestre em políticas públicas e serviços de saúde mental, produtor da mídia social “psiquiatra da sociedade”.