Desinformação sobre autismo no Telegram cresceu 150 vezes após a pandemia
Direitos HumanosPara Ergon Cugler, coordenador do estudo sobre desinformação e autismo no Telegram, as narrativas conspiratórias se intensificaram e diversificaram durante a pandemia. “A Covid-19 representou uma virada no comportamento digital e na forma como a informação circula nas redes”, disse em entrevista ao Observatório do Terceiro Setor

Por Lucas Neves
A desinformação sobre o Transtorno do Espectro Autista (TEA) cresceu 15.000% na América Latina e Caribe, pós-pandemia de Covid-19, diz estudo. Para Ergon Cugler, autista e coordenador do trabalho, a disseminação de informações falsas sobre o autismo serve, principalmente, aos interesses de quem busca monetizar o medo.
O estudo da Fundação Getúlio Vargas (FGV), em parceria com a Autistas Brasil, avaliou mais de 58 milhões de mensagens em 1.659 grupos conspiratórios do Telegram, entre 2015 e 2025. Na América Latina e Caribe, os conteúdos nocivos tiveram cerca de 100 milhões de visualizações e atingiram mais de 4 milhões de usuários.
Em entrevista ao Observatório do Terceiro Setor, Cugler explica a relação entre a pandemia e o crescimento da desinformação sobre o TEA. “A Covid-19 representou uma virada no comportamento digital e na forma como a informação circula nas redes”, diz Cugler. Ele comenta que o período desencadeou uma onda de medo, incerteza e busca por explicações rápidas.
Somente entre 2020 e 2021, auge do período pandêmico, o volume de conteúdos enganosos cresceu 635%, expandindo-se graças ao terreno fértil criado pelo ambiente conspiratório durante a crise sanitária, segundo o pesquisador.
“Muitos usuários, inseguros diante de orientações institucionais e carentes de informação clara, migraram para comunidades digitais que ofereciam respostas simplificadas e emocionais para questões complexas” — Ergon Cugler
O pesquisador CNPq do Laboratório de Estudos sobre Desordem Informacional e Políticas Públicas (DesinfoPop/CEAPG/FGV), esclarece que, durante a pandemia, as narrativas conspiratórias se intensificaram e também diversificaram.
Nesse cenário, o autismo foi incorporado como uma nova frente de pânico moral, muitas vezes associado, de maneira infundada, à vacinação, à radiação 5G ou a supostos contaminantes presentes em alimentos industrializados. “O que inicialmente surgiu como uma reação à crise sanitária acabou se institucionalizando dentro dessas comunidades, dando origem a fluxos contínuos de desinformação que se mantêm até hoje”, conclui.
Telegram utilizado como ferramenta conspiracionista
O Brasil lidera na propagação de teorias da conspiração no Telegram, somando 46% dos conteúdos sobre autismo no continente. Ao todo, foram mais de 22 mil publicações, as quais alcançaram cerca de 1, 7 milhões de usuários e atingiram quase 14 milhões de visualizações durante o período investigado.
Semelhante ao WhatsApp, o Telegram é um aplicativo de mensagens instantâneas que permite troca de informações por meio de textos, áudios, vídeos e arquivos, além de possibilitar a criação de grupos de bate-papo.
Para Cugler, uma série de características estruturais do Telegram permitiram que ele se tornasse o ambiente ideal para propagação de conspirações. Nesse sentido, o pesquisador cita fatores como a ausência de uma moderação efetiva, o incentivo ao anonimato, a possibilidade de criação de grupos em larga escala e o uso de algoritmos de recomendação que aprofundam as bolhas informacionais.
“Recursos como o ‘Canais Similares’, por exemplo, sugerem automaticamente outros grupos conspiratórios com base em padrões de navegação, acelerando o processo de radicalização. Tudo isso transforma o Telegram num terreno fértil para redes de desinformação e exploração pseudocientífica”, alerta.
A quem interessa propagar notícias falsas sobre o TEA?
A disseminação de informações falsas sobre o Transtorno do Espectro Autista serve, em primeiro lugar, aos interesses de quem monetiza o medo, explica Cugler. Utilizando a estratégia de criar pânico moral, o pesquisador conta que diversos grupos e influenciadores digitais associam o autismo a causas fantasiosas e apresentam soluções milagrosas.
Segundo ele, em diversos casos, “os mesmos perfis que espalham desinformação são também os que vendem produtos ou serviços supostamente terapêuticos. Isso revela uma engrenagem organizada que transforma a dor e a desinformação em modelo de negócio”.
Para combater essas articulações no Telegram, Cugler destaca ser necessária uma atuação multissetorial e estruturada em três eixos complementares: a responsabilização jurídica de quem lucra com a desinformação, a adoção de políticas adequadas de moderação de conteúdo e o investimento em educação midiática e científica.
“Só com uma cidadania digital ativa e informada será possível enfraquecer o poder desses grupos e fortalecer a saúde pública baseada em evidências” — Ergon Cugler
As desinformações mais difundidas nos grupos conspiratórios
O Estudo da Fundação Getúlio Vargas (FGV) mapeou também as desinformações mais divulgadas nos grupos de Telegram, tanto sobre as causas do autismo quanto a respeito das possíveis curas.
Em relação às causas, foram mapeadas desde explicações como a deficiência de serotonina e exposição a alumínio, até alegações como consumo do salgadinho Doritos e inversão do campo magnético da Terra. Além disso, houve a incidência de teorias relacionadas ao negacionismo científico, à vacinação e até o uso de microondas.
Sobre as curas falsas para o autismo, a pesquisa destacou práticas nocivas como o uso do dióxido de cloro (CDS), a ozonioterapia, terapias de eletrochoque e a ingestão de prata coloidal e azul de metileno. Segundo o estudo, muitos desses produtos e práticas são comercializados abertamente em grupos do Telegram.

Para Sarita Melo, idealizadora do Congresso Jornada do Autismo e mãe atípica de Elisa (nível 3 de e), esses tratamentos inseguros, muitas vezes, são baseados em estudos de caso com uma, duas ou três crianças. No entanto, ela alerta que o TEA exige um “tratamento seguro e eficaz, com base em evidências, em metanálises, em estudos randomizados, — ou seja, o que existe de melhor e mais seguro hoje para aquele tratamento”.
Sarita também comenta a respeito da perda de tempo ao realizar tratamentos ineficazes e inconsistentes para o TEA. “O mais nocivo é justamente isso: saber que a criança tem uma janela de oportunidade e não dar essa chance a ela, porque está trilhando um caminho que não é o que ela realmente precisa”.
A busca por informações sobre o autismo na internet
Mesmo com o volume de desinformação, no Telegram e na internet, em geral, Sarita acredita ainda ser válido buscar informações a respeito do TEA virtualmente. “Muitos profissionais de grande bagagem, com currículo sólido, criam conteúdos. A maioria dos nossos palestrantes do congresso tem conteúdo pioneiro no YouTube, no Instagram, sobre o tema”, comenta.
No entanto, ela afirma ser necessário ir além, uma vez que a internet tende a oferecer uma visão geral do assunto. “Você consegue ter mais domínio, mais informações, mas é necessário buscar algo a mais. É necessário buscar mais conteúdo, que as famílias se capacitem, que os profissionais se capacitem. E isso não vai acontecer com um conteúdo de um ou dois minutos na internet”.
Congresso Jornada do Autismo
Idealizado por Sarita, o Congresso Jornada do Autismo deste ano acontecerá nos dias 31 de maio e 1º de junho, no Centro de Convenções Ulysses Guimarães, em Brasília–DF. Um dos principais objetivos do evento é disseminar informações confiáveis sobre o Transtorno do Espectro Autista, reunindo especialistas, pais e cuidadores de todo país.
“Trazer um conteúdo técnico, multidisciplinar, com orientação para todas essas áreas tão importantes no tratamento, com certeza é uma forma de combater a desinformação”, afirma Sarita, ao falar do papel do congresso na luta contra as conspirações.
Ela também cita o congresso como uma capacitação em larga escala, com a presença de mais de 3 mil pessoas e salienta a importância do evento. “O autismo envolve prejuízos diversos — motores, de comunicação, na área sensorial — então é fundamental contar com fonoaudiólogos, fisioterapeutas, psiquiatras, neuropediatras, todos preparados para lidar com o TEA”, conclui.
Entrevista completa com Sarita Melo
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Com a grande incidência de notícias falsas sobre o TEA, no Telegram e na internet em geral, você acredita que é válido buscar informações sobre o tema de forma virtual? Caso sim, como encontrar materiais confiáveis?
É válido buscar informações na internet, sim. Muitos profissionais de grande bagagem, com currículo sólido, criam conteúdos. A maioria dos nossos palestrantes do congresso tem conteúdo pioneiro no YouTube, no Instagram, sobre o tema. Então, sim, as famílias podem buscar. Mas é um conteúdo que acaba não sendo de capacitação. Você consegue ter mais domínio, mais informações, mas é necessário buscar algo a mais. É necessário buscar mais conteúdo, que as famílias se capacitem, que os profissionais se capacitem. E isso não vai acontecer com um conteúdo de um ou dois minutos na internet — ali você vai encontrar um resumo sobre aquele tema.
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Entre as desinformações mais difundidas sobre o autismo, qual você considera a mais nociva?
Hoje existe um mercado de pessoas que criam tratamentos sem evidência, e isso é muito nocivo. Esses tratamentos muitas vezes são baseados em estudos de caso com uma, duas ou três crianças, e quem criou acredita que aquilo pode ser um método. Mas quando a gente fala sobre Transtorno do Espectro Autista, é preciso um tratamento seguro e eficaz, com base em evidências, em metanálises, em estudos randomizados, — ou seja, o que existe de melhor e mais seguro hoje para aquele tratamento e não o que está em estudo.
O que está em estudo ainda é muito incerto, muitas vezes inseguro. Coloca em risco e faz com que as famílias percam tempo. E o mais nocivo é justamente isso: saber que a criança tem uma janela de oportunidade e não dar essa chance a ela, porque está trilhando um caminho que não é o que ela realmente precisa.
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Quais conselhos você daria para um responsável que acabou de receber o diagnóstico de autismo e está em busca de informações adequadas?
Bom, o conselho que eu dou para uma família ou para um profissional que acabou de receber uma criança com Transtorno do Espectro Autista é: essa criança é o amor da vida de alguém. E, sim, é preciso correr contra o tempo. O tempo é cérebro no autismo.
O que isso quer dizer? Que quanto mais tempo se perde, menos desenvolvimento essa criança pode ter. Então, é hora de ir do luto para a luta, sabe? Arregaçar as mangas e correr atrás, porque todo o tempo sem intervenção é um tempo que não volta mais.
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Qual a expectativa de impacto para o Congresso Jornada do Autismo em relação ao combate à desinformação?
A expectativa em relação ao combate à desinformação com o congresso é muito grande, porque temos ali profissionais preparados. O autismo envolve prejuízos diversos — motores, de comunicação, na área sensorial — então é fundamental contar com fonoaudiólogos, fisioterapeutas, psiquiatras, neuropediatras, todos preparados para lidar com o TEA. E isso ainda é algo muito específico, de pouco conhecimento.
Trazer um conteúdo técnico, multidisciplinar, com orientação para todas essas áreas tão importantes no tratamento, com certeza é uma forma de combater a desinformação. Mais do que isso, é uma capacitação em larga escala — são mais de 3 mil pessoas presencialmente, e, no online, com certeza muito mais. Então, trazer um congresso com essa seriedade e com profissionais tão preparados é oferecer o que há de melhor em conteúdo e dar o norte correto a essas famílias e esses profissionais.
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Como a desinformação pode influenciar no bem-estar e no cuidado das crianças com TEA?
Essa pergunta resume tudo o que eu falei até agora. O combate à desinformação proporciona uma jornada diferente para as famílias e para os profissionais. Ele traz capacitação, traz conhecimento adequado. A gente precisa falar sobre o que é eficaz, o que é seguro, e isso ajuda a tornar essa jornada menos difícil.
Sabemos que não existe autismo sem prejuízo, mas é possível fazer com que esses prejuízos sejam menores. O objetivo é que as famílias tenham o a algo que realmente melhore a qualidade de vida delas, e que os profissionais também consigam oferecer isso. Afinal, são eles que estão na ponta, executando o plano de tratamento. Esse é o trabalho que a gente faz com o congresso: capacitação de famílias, profissionais, cuidadores, para entenderem todas as faces do autismo e, a partir disso, proporcionarem um tratamento adequado, melhorando a qualidade de vida para essa causa.
Entrevista completa com Ergon Cugler
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O estudo mostrou que o aumento da desinformação sobre o TEA ocorreu, principalmente, após a pandemia. O que pode explicar essa relação?
A Pandemia da Covid-19 representou uma virada no comportamento digital e na forma como a informação circula nas redes. Ela desencadeou uma onda de medo, incerteza e busca por explicações rápidas em meio ao caos. Nesse contexto, o ambiente conspiratório encontrou terreno fértil para se expandir. Muitos usuários, inseguros diante de orientações institucionais e carentes de informação clara, migraram para comunidades digitais que ofereciam respostas simplificadas e emocionais para questões complexas.
Nesse vácuo de confiança, narrativas conspiratórias não apenas se intensificaram, como também se diversificaram. O autismo foi incorporado como uma nova frente de pânico moral, muitas vezes associado, de maneira infundada, à vacinação, à radiação 5G ou a supostos contaminantes presentes em alimentos industrializados. O que inicialmente surgiu como uma reação à crise sanitária acabou se institucionalizando dentro dessas comunidades, dando origem a fluxos contínuos de desinformação que se mantêm até hoje.
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A quem interessa disseminar informações falsas sobre o autismo e por que o Telegram se tornou uma ferramenta tão utilizada para este fim?
A disseminação de informações falsas sobre o Transtorno do Espectro Autista (TEA) serve, em primeiro lugar, aos interesses de quem monetiza o medo. Diversos grupos e influenciadores digitais criam pânico moral deliberadamente, associando o autismo a causas fantasiosas e apresentando soluções milagrosas, como terapias alternativas, kits de “desintoxicação” ou compostos químicos perigosos como o dióxido de cloro. Em muitos casos, os mesmos perfis que espalham desinformação são também os que vendem produtos ou serviços supostamente terapêuticos. Isso revela uma engrenagem organizada que transforma a dor e a desinformação em modelo de negócio.
O Telegram, por sua vez, tornou-se o ambiente ideal para essa dinâmica por uma série de características estruturais: a ausência de uma moderação efetiva, o incentivo ao anonimato, a possibilidade de criação de grupos gigantescos e o uso de algoritmos de recomendação que aprofundam as bolhas informacionais. Recursos como o “Canais Similares”, por exemplo, sugerem automaticamente outros grupos conspiratórios com base em padrões de navegação, acelerando o processo de radicalização. Tudo isso transforma o Telegram num terreno fértil para redes de desinformação e exploração pseudocientífica.
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Quais são as melhores formas de combater os grupos conspiratórios no Telegram?
O combate a grupos conspiratórios no Telegram precisa ser multissetorial e estruturado em três eixos complementares. Em primeiro lugar, é urgente avançar na responsabilização jurídica de quem lucra com a desinformação, especialmente em casos que envolvem práticas de charlatanismo e riscos à saúde pública. Não se trata apenas de discurso problemático, estamos lidando com esquemas organizados que vendem produtos nocivos e colocam em risco a integridade física de crianças e famílias inteiras.
Em segundo lugar, é necessário que as plataformas digitais adotem políticas mais proativas e transparentes de moderação de conteúdo. No caso do Telegram, isso significa rever mecanismos de recomendação automática e permitir maior auditoria sobre grupos de grande alcance que promovem conteúdos anticientíficos.
Por fim, mas não menos importante, é fundamental investir em educação midiática e científica, capacitando desde crianças e jovens até pessoas idosas a reconhecerem estratégias de manipulação, linguagem pseudocientífica e propostas fraudulentas. Só com uma cidadania digital ativa e informada será possível enfraquecer o poder desses grupos e fortalecer a saúde pública baseada em evidências.