Como a arte pode nos humanizar?
Trilha sonora para ler este texto: Papá Roncón e Katanga, Marimba Magia
Inicio esta terceira coluna um pouco mais satisfeita por não estar tão atrasada e por conseguir equilibrar minha rotina entre trabalho, lazer, descanso e escrita. Acho que as férias que tirei me ajudaram a reencontrar uma fórmula de modo a dar conta de todos os afazeres e não me afundar numa atividade única.
E não poderia deixar de dar continuidade a uma narrativa meio reflexiva e meio pessoal. Na coluna anterior, eu estava iniciando as minhas férias, nesta eu já estou de volta às atividades. E foi durante o período de repouso que me surgiu a ideia do tema deste terceiro texto: como a arte pode nos lembrar de nossa humanidade?
Sem ter planejado um destino antecipado para estas férias, foi conversando por acaso com uma amiga de anos, que já há algum tempo mora em Quito, que decidi conhecer as belezas do nosso país latino irmão Equador. ei uma semana subindo e descendo as ladeiras da cidade, esquentando no sol escaldante do dia e congelando no frio da noite, conversando com as pessoas nas ruas, redescobrindo uma outra história além daquela trazida pelos livros, escalando e desbravando vulcões, tentando manter a oxigenação do cérebro mesmo a mais de 5 mil metros, conhecendo a Mitad del Mundo, experimentando as feiras culturais locais, enviando postais aos amigos.
E no meio de uma agenda toda planejada para aproveitar cada segundo no solo equatoriano, tive a oportunidade de conhecer a arte de Oswaldo Guayasamín, pintor equatoriano de referências cubistas que dedicou os últimos trinta anos de sua vida para construção de uma casa que pudesse se tornar um museu capaz de centralizar toda sua arte. O motivo? Ele temia que, após a sua morte, sua arte ficasse espalhada em fragmentos pelo mundo em outros museus ou em coleções particulares, e o propósito dele era que toda pessoa pudesse contemplar sua obra em sua integralidade para compreender o sentimento de horror gerado pelas guerras e outras violações de direitos humanos. E de fato ele conseguiu cumprir seu objetivo, observar seus quadros em conjunto nos gera um sentimento de reflexão profunda. Quem tiver a oportunidade de um dia viajar para Quito, recomendo visitar a Casa Museo Guayasamin, seja pela arquitetura da casa, seja pelas obras, seja pela história, seja pelo momento de reflexão. Após a visita guiada pela residência, local que foi espaço para recepcionar outros artistas, chefes de Estado e tantas outras personalidades, é possível ear pelo jardim, conhecer a árvore sob a qual ele foi enterrado e conhecer o enorme galpão com exposições rotativas e temáticas. Ao final, ao sair da casa, a-se por um corredor com várias de suas frases, dentre as quais destaquei minha favorita: “Mi pintura es para herir, para arañar y golpear en el corazon de la gente. Para mostrar lo que el Hombre hace contra del Hombre”.
Voltando ao Brasil, aproveitei meus últimos dias de férias e ei uns dias no Rio de Janeiro, para fugir do frio de São Paulo. Durante a estadia no Rio, tive a oportunidade de visitar novamente, porque já havia ido em novembro em São Paulo, a exposição Raiz do artista Ai Weiwei. Eu acabei conhecendo a obra de Weiwei totalmente por acaso e foi uma das exposições que mais me impressionou. Seja pela capacidade de trabalhar com tantos materiais diferentes, seja pela sensibilidade do artista aos detalhes, seja pela denúncia social, seja pela atualidade, a obra de Weiwei incomoda, cutuca, faz pensar e é muito difícil sair de uma das suas exposições sendo a mesma pessoa. A exposição Raiz é repleta de referências e frases do artista estampada nas paredes, dentre as quais destaca: “A história nos ensina que no início das maiores tragédias havia ignorância”. Weiwei foi preso político na China e acusado por subversão, tornou-se um dos principais ativistas que exigiam transparência do governo a respeito das mortes de estudantes em decorrência do terremoto de 2008 em Sichuan. Ele iniciou a Investigação dos Cidadãos, que procurava registrar cada uma das crianças que havia morrido nas construções de escolas de má qualidade, apelidadas de “prédios de tofu”. Um de seus colegas e ativistas, Tan Zuoren, foi preso e acusado de incitar a subversão contra o estado. Weiwei ia testemunhar a favor de seu amigo, mas na noite anterior, seu quarto foi invadido pela polícia, ele foi espancado e impedido de ir ao julgamento. Foi mantido na prisão durante oito meses e esse fato deu origem a um incontável número de obras. Esta é apenas uma dentre tantas histórias por detrás de cada uma das criações do artista, a entrevista que ele concedeu para o programa Roda Viva da TV Cultura pode apresentar maiores detalhes de sua carreira e percepção sobre o mundo.
Mas, o que Guayasamín e Weiwei guardam em comum, além de terem sido roteiro de turismo da autora desta coluna? Para mim, os dois artistas representam aquilo que a arte é capaz de nos despertar: a consciência de sermos seres humanos e, portanto, seres que refletem sobre os fatos que nos rodeiam.
Você já parou para refletir sobre seus próprios atos? Sobre suas escolhas? Sobre seus desejos? Como isso impacta no mundo ao seu redor? Se você parasse para refletir um pouco, conseguiria distinguir quais são os atos motivados pela sua própria vontade e quais são as escolhas levadas pela rotina? E quantas vezes, motivados pelo cotidiano, agimos de forma mecânica e insensível?
Em São Paulo, por exemplo, o quanto já naturalizamos o fato de pessoas dormirem nas ruas e mexerem no lixo para se alimentarem? O quanto isso impacta a nossa visão de mundo e a visão das futuras gerações? Quanto que o discurso de um chefe de estado, que ironiza vidas de minorias e ignora fatos que estão devastando milhares de hectares das nossas florestas, é considerado como algo normal e sem perigo? O quanto banalizamos o mal que nos rodeia? E o quanto contribuímos para a perpetuidade deste mal?
Estas não são questões da nossa contemporaneidade e algumas delas levaram Stanley Milgram, psicólogo social norte-americano a conduzir um famoso experimento na década de 1960 sobre o comportamento humano e sobre a obediência irrefletida às autoridades. Há vários vídeos originais sobre a condução do experimento no Youtube, basta procurar por Milgram na plataforma e serão inúmeros os resultados encontrados. Mas para ilustrar com mais detalhes a histórica por detrás do experimento, sugiro o filme “O experimento de Milgram”, de Michael Almereyda, de 2015. O filme retrata toda a vida de Milgram, mas o que mais me interessa é o experimento que o tornou famoso e controverso, ao mesmo tempo.
O experimento colocava dois voluntários para um teste em laboratório. Eram atribuídos papéis aos voluntários: “professor” e “aluno”. Um dos voluntários era um ator contratado a quem era atribuído sempre o papel de “aluno”. Havia uma terceira pessoa, que também era um ator disfarçado, que interpretava o papel de “pesquisador”, vestindo um jaleco cinza que acompanhava o desenvolver do experimento fazendo anotações em sua mesa. O experimento ocorria em duas salas, uma para o “aluno” e outra para o “professor”. O “professor”, o verdadeiro voluntário que não sabia do experimento por completo, era orientado a ler uma lista de pares de palavras para testar o conhecimento do “aluno”. Cada vez que o “aluno” errava em sua resposta, o “professor” era orientado a aplicar um choque no “aluno” que se encontrava na outra sala. A cada resposta errada o choque aumentava algumas voltagens. Os choques iniciavam em 15 volts (ligeiro choque) a 450 (choque grave), que pode levar uma pessoa a ter uma parada cardíaca. O “aluno”, na realidade não recebia os choques, mas era orientado a dar respostas erradas para testar os limites do “professor”. O experimento foi realizado com alguns ajustes, com pessoas de lugares diferentes, idades diversas, gêneros, etnias, locais, mas os resultados eram sempre semelhantes: 65% dos participantes chegavam sempre até o mais alto nível de 450 volts e todos os participantes até 300 volts. Detalhe importante: em nenhum momento, os “professores” eram ameaçados pelo “pesquisador” a continuarem, muitos se mostravam desconfortáveis com a continuidade do experimento, mas repetiam que não eram responsáveis pelo sofrimento alheio e estavam ali “obedecendo ordens”.
Milgram foi profundamente criticado pela comunidade acadêmica, os resultados de sua pesquisa foram questionados, mas fez o mundo pensar a célebre frase de Eichmann durante seu julgamento no Tribunal Distrital em Jerusalém de que “estava obedecendo ordens” ao relatar as práticas que comandou durante o holocausto na Segunda Guerra. “A responsabilidade não é minha, estou apenas obedecendo ordens” deixou de pertencer tão somente aos nazistas da Segunda Guerra Mundial. É possível criticar Milgram sob vários aspectos, mas seu experimento nos provoca a reflexão: se eu estivesse nesta posição eu faria o mesmo?
O caso de Eichmann acabou se tornando livro de Hannah Arendt, filósofa que acompanhou o julgamento como correspondente da revista The New Yorker, denominado “Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal”, obra em que ela apresenta e desenvolve o conceito que chamou de banalidade do mal. A história de Hannah Arendt e o recorte deste fato histórico de sua vida, foi retratado no filme que leva seu nome “Hannah Arendt”, produção de 2013, escrito e dirigido por Margarethe von Trotta. Para quem não gosta de filme biográfico, sugiro ver este trecho que consegue ilustrar parte da teoria a partir da interpretação da atriz Barbara Sukowa, e que minhas poucas palavras estão bem longe de conseguir resumir a profundidade e imensidão do tema.
Arendt defende que qualquer pessoa é capaz de cometer as maiores atrocidades, porque a burocracia sob a qual todos estamos submetidos permite produzir seres sujeitos aos atos mais abomináveis. A repetição contínua das mesmas ideias pode gerar seres capazes de cometer atos perversos sem minimamente questionar o motivo pelo qual estão agindo daquela maneira. E isso decorre da nossa incapacidade de argumentar, da ausência da habilidade em lidar com ideias diferentes das nossas, da perda de um espaço público apto para o debate de ideias e ideais.
E para reverter um possível cenário catastrófico em que a sociedade se transforma em um ambiente de zumbis burocratas, não proponho planos revolucionários, que exigem atos heroicos e sacrifício da própria vida, penso que a melhor forma de evitarmos um futuro sombrio são as pequenas ações cotidianas.
É o não sorrir aos comentários misóginos em uma reunião de trabalho, respondendo apenas com um silêncio constrangedor. É o elogio ao trabalho bem feito de alguém que convive diariamente conosco. É não dar continuidade a fofocas ou comentários desnecessários sobre fatos que não vivenciamos. É respeitar as pessoas com quem nos relacionamos, seja uma amizade, seja um namoro, seja um casamento de curta ou longa data, sendo sinceras com elas e responsáveis com os sentimentos alheios. É evitar respostas lacônicas. É parar de nos esquivarmos das responsabilidades que a vida nos impõe. É falar a verdade quando necessário e saber calar quando nossas palavras forem capazes de magoar alguém. É saber escutar uma pessoa que precisa desabafar sem condená-la por seus atos.
Alguma coisa soou familiar e atual? Se você acha que sim, proponho começarmos a trabalhar para o desenvolvimento do diálogo constante, da empatia com os nossos semelhantes e nossos diferentes. Se não conseguirmos nos sensibilizar pelas pessoas que nos cercam, sejam nossos vizinhos, família ou colegas de trabalho, podemos começar a frequentar mais exposições de artistas como Guayasamin e Weiwei. Parafraseando um dos textos na exposição de Weiwei, gosto de relembrar que: “se você desviar o olhar, você é conivente”.
PS: dedico este singelo texto à amiga de muitos anos, Rosimeire Barboza, que gentilmente me recebeu em sua casa no Equador, que embalou minhas manhã e noites com conversas tão ricas e que tanto contribui para a pesquisa em direitos humanos.