Direitos Humanos: é direito “de bandido”?
Não é nada raro que os Direitos Humanos sejam equivocadamente associados de forma pejorativa a “direitos de bandido”: militantes de direitos humanos veem-se frequentemente acusados de um suposto descaso com ditos “direitos humanos das vítimas”, protesto habitualmente acompanhado do desgastado argumento de que os direitos humanos atenderiam apenas aos “delinquentes”, e pior, que corresponderia a uma condescendência com a prática de crimes. “Se você gosta tanto, por que não leva pra sua casa? Você só tem pena de bandido, não tem pena da vítima?”
Antes de mais nada, há que se desfazer as confusões entre sentimento de solidariedade e compaixão pelo sofrimento alheio e direitos que podem ser pleiteados juridicamente. Solidariedade, compaixão, raiva ou revolta são sentimentos humanos naturais e legítimos – ainda mais em uma situação traumática de violência – mas que se encontram fora do alcance dos limites do Direito, em especial do Direito Penal.
Deixo desde já combinado com as leitoras e leitores que volto ao assunto dos direitos humanos das vítimas de crimes na próxima coluna – sim, este assunto também precisa de debate. Mas, antes, precisamos entender – e desfazer – esse antigo equívoco que consiste em supor que a defesa dos direitos de acusados de crimes perante o sistema de justiça seja equivalente a defender a prática de delitos.
Afinal, o que tem a ver os direitos humanos com os direitos das pessoas acusadas de crimes?
Começando do começo: as Revoluções Liberais do século XVIII (como a Revolução sa e as guerras de religião inglesas) deixaram um legado cultural que até hoje serve de base às estruturas jurídicas de grande parte dos países do Ocidente. Uma dessas heranças é a determinação de que, em um regime político democrático, o Estado jamais poderá retirar certos direitos dos cidadãos: é o que se chamam direitos fundamentais. A Constituição Federal brasileira assegura cinco direitos fundamentais individuais: a vida, a igualdade, a propriedade, a segurança e a liberdade. Porém, embora fundamentais, não são absolutos. Quer dizer: não podem ser suprimidos por lei ou nem mesmo emenda constitucional, mas para que todos possam exercer seus direitos, é preciso limites – nada mais que a antiga história de “o seu direito termina onde começa o do outro”.
Mas vamos lembrar que se trata de direitos fundamentais, e por isso são necessários cuidados para estabelecer suas limitações: a liberdade de ir e vir de alguém, por exemplo, só pode ser limitada se essa pessoa cometer um crime. Isso significa dizer que o dono de um hospital não pode impedir a saída de um paciente que não pagou a conta (o que não impede que ele seja cobrado em juízo por isso), que um marido não pode trancafiar a esposa em casa para impedir que ela trabalhe (se há diferenças inconciliáveis na relação conjugal, a lei brasileira já ite o divórcio, desde 1977) e uma pessoa sobre qual não há sequer suspeita da prática de crime não pode ser detida para mera averiguação (como acontecia durante o governo militar, que não era um regime democrático).
É somente o cometimento de um crime que autoriza o Estado a limitar a liberdade de ir e vir de uma pessoa. E, para se considerar que alguém praticou um crime – algo bem mais complexo na vida real do que as declarações binárias de guilty or not guilty do cinema norte-americano – é necessário que o Estado, por meio do Poder Judiciário, declare a condição de condenado daquele cidadão ao término definitivo do processo (tradução português-juridiquês de trânsito em julgado), por meio do qual se fazem as provas (testemunhas, documentos, perícias) do fato criminoso. Sem isso, qualquer prisão, é, em princípio, injusta.
Aqui é preciso destacar que, em determinado momento da História do Ocidente (Ocidente aqui especialmente entendido como a Europa Ocidental, de onde herdamos boa parte de nossos preceitos jurídicos, como já mencionei), a sociedade ou a entender que quando um crime ocorre, o problema não é da vítima, e sim do Estado. Isso porque a violação de direito praticada por meio da conduta criminosa a a ser considerada tão grave que atinge toda a comunidade onde o crime aconteceu, deixando de constituir um mero conflito interpessoal, cabendo ao Estado a responsabilidade de determinar as consequências jurídicas do fato. Além disso, constatou-se que quando se permitia que a própria vítima – ou seus familiares – tomassem providências para fazer justiça com as próprias mãos, a violência se propagava e, tanto quanto o crime precedente, as reações individuais mantinham sob ameaça a paz social: é a fase conhecida historicamente como da vingança privada. Assim, decide-se que somente o Estado teria direito de punir o autor de um crime – ou seja, somente o Estado é que deteria, de forma impessoal, o monopólio da violência.
Surge, então, o ime: na relação acusado/Estado, a balança de poder pendia para o lado do Estado. Afinal, o Estado pode fazer uso da força com amparo da lei, dispõe de meios de investigação para provar a culpa do acusado muito mais fartos do que este último possui para provar sua inocência e ainda conta com o serviços das instituições do sistema de justiça. Em suma: O Estado prende o cidadão, mas o cidadão não prende o Estado.
O sistema de justiça criminal e as regras de processo penal foram desenvolvidos para conferir equilíbrio a essa balança: fazê-la pesar para o lado do Estado não aumenta a segurança da população e, independentemente de o acusado ser ou não culpado pelo crime que lhe é atribuído, aumenta seriamente o risco de se praticarem injustiças. Por exemplo, permanecer preso durante o processo e ser absolvido ao final, ou condenado por uma pena mais curta do que o tempo transcorrido na prisão provisória.
Quem brada que “o Brasil é o país da impunidade” e que “ninguém vai preso nesse país” talvez desconheça o fato de sermos a 4ª população carcerária do mundo (em números absolutos), e que cerca de 40% dessas pessoas estão encarceradas sem julgamento. Prende-se muito, e prende-se mal.
As supostas “brechas”da lei, se é que existem, não estão na lei. Talvez estejam na mentalidade que inverte um antigo dito já um tanto pervertido no original: se já se disse “aos inimigos, a lei, aos amigos, tudo”, é o caso de pensar na brecha ideológica que permite que se aplique tudo – menos a lei – à imensa parcela dos presos provisórios, muitas vezes apontados como o “inimigo” a ser combatido.
Em outras palavras: todo esse sistema processual foi construído pensando na preservação do direito à liberdade do cidadão, e na garantia de que, caso esta seja limitada em decorrência de uma condenação, que a limitação se dê de forma justa, e nos ditames da lei. O Direito Penal (assim como o Direito Processual Penal) corresponde, portanto, ao conjunto de regras jurídicas que regulam a justa aplicação das penas – ou seja, somente atua (de forma lícita, ao menos) depois que o crime foi praticado, para assegurar que o direito fundamental à liberdade de ir e vir (que é um dos direitos humanos) não seja suprimido ilegalmente.
Essa garantia ao direito à liberdade vale para você, para mim, e para qualquer outra pessoa acusada de crime.
Seremos todos bandidos?
Assunto para outra coluna! Até lá!
19/10/2015 @ 10:34
[…] coluna anterior, procurei oferecer subsídios para juntos pensarmos se Direitos Humanos são direito “de […]
11/02/2016 @ 15:30
[…] seria um fator de estímulo para a prática de crimes. Dessa “lenda urbana” já tratamos na coluna Afinal, direitos humanos é direito ‘de bandido’?, na qual espero ter esclarecido o porquê todos esses chavões são […]
29/05/2017 @ 10:48
[…] [2] Falei sobre o surgimento do Direito Penal e sua relação com os Direitos Humanos nesta coluna. […]
24/08/2017 @ 14:31
[…] por várias vezes porque não cabe dizer que “direitos humanos é direito de bandido” (veja nesta coluna), bem como de falar sobre as muitas outras frentes de atuação e possibilidades de trabalho nessa […]
14/12/2020 @ 12:25
o cidadão afetado pela criminalidade não tem direitos ,isso que vocês chamam de direitos para a vitima não acontece