Direito ao trabalho digno e direito ao ócio

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Trilha sonora para ler este texto: Zaz, Je veux

Começo esta coluna um pouco envergonhada pelo meu atraso. Comprometi-me a escrever um texto por mês, porém, logo depois da entrega do primeiro, tive uma pequena crise de falta de criatividade ou talvez ideias demais na cabeça e a indecisão por escolher apenas uma.

Depois de tantos inícios de temas que não chegaram ao segundo parágrafo, dediquei um tempo para refletir o motivo da minha falta de criatividade. Um deles foi uma ressaca que parece não querer ir embora de um final de tese. Quem já ou pela fase de mestrado, doutorado, ou até mesmo um trabalho de conclusão de curso – o tão temido TCC – sabe um pouco da sensação que estou a ter. Ler e escrever que sempre foram duas atividades que me agradavam tanto, tornaram-se dois ofícios que me fazem lembrar de noites inteiras sem dormir para desenvolver algumas páginas. Até lavar a louça me parece ser uma atividade mais agradável do que ar algumas horas sentada lendo um livro ou escrever qualquer coisa que exija um pouco mais de concentração. Também percebi que a coluna – um convite que me foi feito e que me causou tanta alegria – ou a ser um motivo de angústia por não conseguir desenvolver algumas poucas páginas. Fiquei com a sensação de que escrevi tudo aquilo que tinha dentro de mim e que agora não me sobrou mais nenhuma criatividade. No entanto, fui tentando racionalizar essa sensação e percebi que o sentimento de não prazer para escrever essa coluna era o fato de não conseguir equilibrar uma atividade com os atuais compromissos profissionais que assumi.

Após a finalização do doutorado, percebi um desequilíbrio na divisão das minhas atividades e deixei o meu trabalho diário tomar conta da maior parte do meu tempo. Por motivos externos e internos, o tempo vago deixado pela tese foi quase que automaticamente reado para o meu trabalho. Qualquer atividade durante a semana era imediatamente rechaçada na minha cabeça porque a primeira coisa que me vinha à mente era que eu precisava estar descansada para poder trabalhar bem no dia seguinte.

E foi exatamente após pensar nessa frase “estar descansada para poder trabalhar” que tive meu momento epifânico para escrever a coluna deste mês: o quanto nos dedicamos ao trabalho e como o trabalho, consagrado como um direito humano, deve ser balizado por outro direito humano: o lazer e o descanso!

Os artigos 23 e 24 da Declaração Universal dos Direitos assim prescrevem:

Artigo 23°

1.Toda a pessoa tem direito ao trabalho, à livre escolha do trabalho, a condições equitativas e satisfatórias de trabalho e à proteção contra o desemprego.

2.Todos têm direito, sem discriminação alguma, a salário igual por trabalho igual.

3.Quem trabalha tem direito a uma remuneração equitativa e satisfatória, que lhe permita e à sua família uma existência conforme com a dignidade humana, e completada, se possível, por todos os outros meios de proteção social.

4.Toda a pessoa tem o direito de fundar com outras pessoas sindicatos e de se filiar em sindicatos para defesa dos seus interesses.

O artigo 23 refere-se ao direito ao trabalho e não se trata de qualquer trabalho, mas sim um trabalho digno, de livre escolha da pessoa, direito à remuneração e que esta remuneração seja capaz de lhe garantir a mínima subsistência para uma vida digna. E este aspecto é fundamental para pensarmos no trabalho que desempenhamos e para as vagas de trabalho que existem disponíveis para as pessoas. Trabalho tem de sobra. Mas trabalho digno é algo raro. E com as alterações em nossas leis trabalhistas e previdenciárias, o trabalho digno vai ficar cada vez mais difícil de ser encontrado.

Quando flexibilizamos aquelas garantias que parecem fazer alusão ao século ado, na verdade estamos flexibilizando garantias mínimas para a existência de uma pessoa. O 13º salário não consiste em um bônus, mas é apenas um reajuste pelas semanas trabalhadas e não recebidas. Não entendeu? Joga no Google “13 é bônus?” e faça uma breve leitura dos primeiros resultados extraídos em páginas de economia. Neste link, há uma explicação bem simples sobre isso.

Assim como licença maternidade não consiste em uma vantagem para as mulheres. Se queremos continuar existindo como seres humanos, algumas pessoas precisam continuar procriando e cabe à sociedade como um todo oferecer o e necessário para que as mulheres possam continuar contribuindo com sua força de trabalho e desempenhando o papel de mães nos primeiros meses de vida de alguém. Nem vou me adentrar ainda mais nessa questão para não mudar o foco desta coluna.

Desprezar qualquer direito trabalhista sem fazer o mínimo de reflexão sobre o assunto é arriscar cair em uma alienação sobre nosso papel neste mundo como seres humanos. Para refletirmos um pouco mais sobre o estado em que todos nós nos encontramos – seja por estarmos angustiados ou cansados trabalhando, seja por estarmos angustiados pela falta de trabalho, ou seja pelo fato de estarmos vivendo em um contexto político-social em que vários direitos estão sendo extirpados – trago para nosso diálogo o documentário “Estou me guardando para quando o Carnaval chegar” (veja o trailer neste link).

Dirigido por Marcelo Gomes, este documentário brasileiro de 85 minutos foi concebido para retratar a história da cidade de Toritama, no agreste pernambucano. Por ter doces recordações de sua infância, época quando viajava com seu pai para a cidade, Marcelo decidiu retornar ao local para fazer uma homenagem à pequena cidade que tanto marcou suas lembranças de menino. No entanto, ao chegar lá, descobriu uma nova cidade tomada por milhares de pequenas fábricas de fundo de quintal produtoras de jeans. Toritama sozinha é responsável pela produção de 20% de todo o jeans do Brasil. Ocorre que, muito distante do sonho de uma agradável vida, a rotina de toda a população se resume à produção constante de segunda a sábado, com jornadas que ultraam 20 horas diárias. Aos domingos, toda a cidade se dedica a levar os produtos para a venda em uma feira regional.

Todo o documentário é dedicado a longas filmagens de máquinas de costura trabalhando constantemente, pilhas e pilhas de jeans sendo carregados por motoqueiros, encarregados pela continuidade da produção, e entrevistas das pessoas orgulhosas por serem donas do próprio negócio. Curioso notar que a maioria dos entrevistados reconhece que não vale a pena trabalhar com carteira assinada. Todos se enxergam no ideal de autonomia, de ser o próprio patrão, sem perceber que estão sendo escravizadas por elas mesmas. É um filme que expõe a falsidade do neoliberalismo.

E foi assistindo ao filme que me enxerguei em meio a essa Toritama. Perceber que eu mesma deixei de fazer qualquer coisa durante a semana para estar descansada para o trabalho no dia seguinte. E isso porque atualmente tenho um trabalho digno, com carteira assinada, com uma jornada diária nos limites legais. Tenho os privilégios que um trabalho digno pode me conceder e, mesmo assim, perco muito fácil meu equilíbrio entre trabalho e lazer.

Pensei muito nisso porque assisti ao filme em uma terça-feira numa sessão que começou às 22h. Fiquei o dia todo ensaiando se iria mesmo ao cinema em uma terça-feira e me permitir estar cansada no dia seguinte. Ao final da sessão, peguei o ônibus às 23h30 de volta para casa orgulhosa por ter conseguido quebrar uma rotina perversa que eu mesma impus para mim.

E voltando para a relação com os direitos humanos, sigo na análise do artigo 24, que trata exatamente do direito ao descanso e ao lazer:

Artigo 24° Toda a pessoa tem direito ao repouso e aos lazeres, especialmente, a uma limitação razoável da duração do trabalho e as férias periódicas pagas.

Não por acaso, o direito ao lazer é subsequente ao trabalho. Não há como falar de dignidade no trabalho se não temos o lazer para equilibrar. E lazer também é um ponto importante para nossa reflexão. O nome do filme é “Estou me guardando para quando o Carnaval chegar” em razão do fato de que quase todos os habitantes da cidade trabalham arduamente sete dias por semana, durante o ano todo, para ter a oportunidade de viajar para a praia durante o Carnaval. Durante os dias de Carnaval, a cidade de Toritama fica quase deserta, só ficam os “perdedores”, que não tiveram condições financeiras para viajar. O mais curioso é que mesmo as pessoas que não tiveram como guardar dinheiro suficiente para a tão sonhada viagem vendem parte de seus pertences – fogão, geladeira, televisão, moto – para poder desfrutar do merecido descanso do Carnaval.

Não se trata de uma crítica às pessoas de Toritama. Quantos de nós não nos endividamos para custear viagens ou qualquer outro bem de consumo para nosso prazer ou lazer? E aqui não estou criticando o gasto com o nosso lazer, mas o fato de trabalharmos desenfreadamente para mantermos algum padrão de vida que não garante de fato um lazer benéfico para nossas vidas. São Paulo é um perfeito exemplo para o que estou tentando dizer. Milhões de paulistanos am as semanas em jornadas frenéticas, assumindo mais de um trabalho para ganhar mais e gastam milhares de reais em restaurantes caros para algumas poucas horas usufruídas aos sábados ou domingos. O lazer que escolhemos para nossos tempos livres são de fato o que queremos ou o que queremos ostentar para uma sociedade baseada em aparências?

Há um interessante livro que me fez mudar meu modo de enxergar a vida chamado “A felicidade paradoxal: ensaio sobre a sociedade do hiperconsumo”, de Gilles Lipovetsky. Li esse livro quando estava sobrevivendo da minha bolsa de mestrado na cidade de São Paulo. Na época, estava muito feliz por ter bolsa e poder me dedicar a minha pesquisa, mas extremamente infeliz por não sobrar quase nada no final de cada mês. Houve um mês que me sobrou apenas R$ 0,63 de saldo na minha conta. Quem já ou por isso sabe do desespero a que estou me referindo. Você torce para não precisar de uma aspirina se tiver uma gripe! Quando li este livro, pensei sobre os meus gastos e sobre o padrão de vida que eu gostaria de ter.

Não estou a defender salários irrisórios para não gastarmos com coisas supérfluas. Cada um sabe o que lhe é importante na vida e precisa saber o quanto precisa trabalhar para alcançar seus objetivos. O que pretendo neste texto é provocar uma reflexão sobre o modo como levamos nossas vidas e como o trabalho e o lazer, se não estiverem mais ou menos equilibrados, podem nos escravizar ao invés de nos libertar. Se não buscarmos este equilíbrio, trabalho e lazer deixam de ser direitos para serem causa de nossa opressão.

Finalizo este texto gozando dos primeiros dias das minhas férias. Fico insatisfeita por não ter encontrado o equilíbrio durante meu período de trabalho para desenvolver este texto e precisar das primeiras horas do meu ócio para me dedicar a uma atividade que tanto amo: escrever! Espero reencontrar este equilíbrio entre lazer e trabalho para poder desenvolver a próxima coluna antes de outras férias!

PS: a partir deste texto sempre irei sugerir uma música como trilha sonora para o momento da leitura! Espero que gostem!

Luciana Marin Ribas

Doutora em Direitos Humanos pela Universidade de São Paulo, Mestra em Direito Constitucional pela PUC-SP, onde também se graduou em Direito. Pesquisadora da Clínica Luiz Gama de Direitos Humanos da USP, dedica-se ao estudo de temas envolvendo educação em direitos e exercício da cidadania.

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