Ciência e saberes tradicionais se unem para proteger as tartarugas, tracajás, iaçás e outras espécies de quelônios da Amazônia
ONGs em AçãoIniciativa reúne comunidades, cientistas e órgãos públicos para fortalecer a conservação de quelônios no médio Rio Solimões, na Amazônia

Uma parceria estratégica entre o Instituto de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá (IDSM), o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) e a Universidade do Estado do Amazonas (UEA) está impulsionando o cenário da conservação de quelônios na região do médio curso do Rio Solimões, Amazônia.
Com foco na Floresta Nacional de Tefé (FLONA Tefé) e na Reserva Extrativista (RESEX) do Baixo Juruá, a iniciativa reúne esforços para integrar ações de proteção, pesquisa e geração de renda, envolvendo ativamente as comunidades tradicionais na conservação dos quelônios amazônicos (tartarugas, cágados e jabutis).
As comunidades locais e instituições parceiras atuam diretamente na proteção das tartarugas-da-amazônia (Podocnemis expansa), tracajás (P. unifilis), iaçás (P. sextuberculata) e outras espécies de quelônios, que desempenham um papel essencial na ecologia dos rios e na segurança alimentar regional. Após décadas de caça ilegal e coleta de ovos, que colocaram essas espécies em risco, os moradores e organizações intensificaram os esforços para garantir a preservação desses animais.
Sistemas comunitários FLONA de Tefé
Desde 2009, comunidades da FLONA de Tefé vêm se organizando para proteger os ninhos de quelônios, por meio da vigilância das praias e da translocação de ninhos para locais seguros. Em 2023, o Instituto Mamirauá, por meio de seu Programa de Manejo da Fauna, iniciou uma colaboração mais estreita com o ICMBio e a UEA, visando apoiar essas práticas com base técnica, organizacional e científica.
Diogo Lima, coordenador do Programa de Manejo da Fauna do Instituto Mamirauá, explica que essas atividades têm raízes profundas na região “Desde os anos 90, o Instituto já atua na conservação de quelônios, em projetos que começaram na Reserva Mamirauá e se expandiram por outras regiões da Amazônia. Agora, queremos fortalecer ainda mais esses sistemas, respeitando o saber tradicional e integrando a ciência e a legislação.”
Segundo Lima, a atuação conjunta visa não apenas aumentar o número de animais devolvidos à natureza, mas também apoiar a autonomia comunitária “Estamos ajudando desde o mapeamento participativo até a capacitação em boas práticas de criação e soltura. E o mais importante: tudo parte da demanda das próprias comunidades.”
A escuta comunitária como base da ação
Uma das ferramentas utilizadas para entender melhor as realidades locais foi a aplicação da matriz FOFA (Forças, Oportunidades, Fraquezas e Ameaças) em encontros com cinco comunidades da FLONA de Tefé: Cacautuba, Itaúba, Boa Vista, Tauary e Bom Jesus. Os levantamentos revelaram um total de 50 citações, com destaque para as fraquezas, que representaram 33% a mais que os outros elementos, evidenciando os desafios enfrentados pelas comunidades.
Entre os pontos fortes, os participantes destacaram a riqueza dos ambientes disponíveis para a conservação, o aumento perceptível das populações de quelônios e a ampla participação comunitária. Por outro lado, questões como falta de apoio externo contínuo, consumo excessivo de ovos e invasões ilegais das áreas protegidas foram apontadas como obstáculos significativos.
Afonso José Cruz Gonçalves Pereira, biólogo do ICMBio, vê na mobilização comunitária o caminho para reverter esse cenário “Nesse programa, a ideia geral é trabalhar a conservação desse grupo animal junto aos comunitários da FLONA Tefé e RESEX do Baixo Juruá, tentando emponderá-los e capacitá-los para atuarem na proteção dos bichos e, consequentemente, do território”.
Soltura e turismo sustentável impulsionam conservação na Amazônia
Em janeiro e março de 2025, foram realizadas importantes solturas de quelônios nas comunidades Cumaru (RESEX Baixo Juruá) e Bom Jesus (FLONA de Tefé), com a devolução de mais de 3 mil animais à natureza. Essas ações se somam às capacitações em translocação de ninhos e boas práticas de manutenção em berçários.
A geração de renda, aliás, é uma preocupação central para garantir a sustentabilidade dos projetos “Essas ações demandam recursos. Temos custos com combustível, alimentação, infraestrutura”, explica Diogo Lima “Por isso, buscamos viabilizar alternativas como o turismo de base comunitária e, no longo prazo, o manejo legal para comercialização.”

Algumas comunidades da FLONA de Tefé já começaram a explorar o turismo como alternativa econômica “Elas têm buscado parcerias com agências locais para oferecer experiências de soltura aos visitantes. Isso gera receita e aumenta o engajamento na conservação”, acrescenta Lima.
A educação como aliada da proteção
O programa também prevê a realização de atividades de educação ambiental voltadas ao público infantojuvenil das comunidades. Em 2025, o ICMBio planeja capacitações sobre práticas de conservação comunitária a serem realizadas na FLONA Tefé, com oficinas de organização comunitária, vigilância, educação ambiental e soltura de filhotes.
“Paralelamente, durante a mesma atividade, estamos pretendendo trabalhar ações de educação ambiental voltadas ao público infanto-juvenil dentro da temática de preservação e proteção comunitária (atividades lúdicas e minipalestras)”, informa Afonso Pereira, do ICMBio.
Conhecimento tradicional, ciência e Poder Público
A colaboração com a Universidade do Estado do Amazonas (UEA) reforça o elo entre o conhecimento acadêmico e o saber tradicional. Para o professor e biólogo Rafael Bernhard, da UEA, a união entre comunidade, ciência e órgãos públicos é essencial.
“A Amazônia é um bioma gigantesco, continental. Dentro dele os quelônios sofrem intensamente com a pressão de caça e coleta dos ovos. Eles só não se encontram num nível maior de ameaça graças às ações para a sua proteção realizadas há décadas pelos órgãos de proteção ambiental federais, estaduais e municipais. A eles somam-se iniciativas de pessoas que vivem no interior e que estão dispostas a colaborar na proteção dos quelônios. Algumas são anteriores à chegada dos órgãos ambientais. Iniciativas que unem o conhecimento tradicional, científico e da legislação através da parceria dos comunitários com órgãos públicos e ONGs tendem a produzir um efeito sinérgico que aumenta a eficiência das ações de conservação”, afirma Bernhard.
Protagonismo comunitário guia a conservação na Amazônia
A consolidação desse esforço coletivo caminha para a formalização de um projeto estruturado, com previsão de submissão a editais de financiamento para projetos complementares. A perspectiva é expandir o modelo para outras áreas da Amazônia, respeitando a especificidade de cada comunidade e promovendo a cogestão das Unidades de Conservação.
Diogo Lima reforça que o protagonismo comunitário é a chave para o sucesso de qualquer iniciativa de conservação “Os projetos que deram certo são aqueles que nasceram da própria comunidade. Nosso papel é apoiar, orientar, mas sempre reconhecendo que o maior conhecimento sobre o território está com quem vive ali.”
Com base em uma atuação integrada, adaptada às realidades locais e voltada ao empoderamento das populações tradicionais, a parceria entre o Instituto Mamirauá, ICMBio e UEA aponta caminhos promissores para a conservação de quelônios na Amazônia. Em um bioma onde os desafios são tão vastos quanto os rios que o cortam e alimentam, a união entre saberes e forças se mostra não apenas eficaz, mas indispensável.