Cárcere na pandemia
Trilha sonora para ler este texto: Livin´ On The Edge, Aerosmith
No último texto que escrevi, ainda estávamos na transição de realidades. Eu ainda estava trabalhando da forma tradicional e a ideia de quarentena em razão da COVID-19 ainda não era tão presente. No início do mês de março eu até imaginei que algo iria mudar, mas não pensei que nossas rotinas seriam afetadas dessa maneira.
A divisão dos dias e das horas se transformou em uma massa amorfa e a noção de tempo ficou afetada. Pelo menos para mim. Eu percebi nesta semana que já estamos nesta rotina há quase três meses.
Pensei que por estar trabalhando de casa, eu acabaria tendo mais tempo para escrever, mas acho que, assim como a maioria das pessoas que ou para esta dinâmica de trabalho, amos a trabalhar mais e ao final do dia não queremos mais ter que lidar com uma tela de computador. Nas primeiras semanas, trabalhei de 10 a 14 horas por dia e os finais de semana foram inexistentes. Mudei o dia pela noite e não observava horário de café da manhã, almoço, jantar. A alimentação era baseada em salsicha e o vestuário foi o mesmo pijama por dias seguidos. E essa dinâmica ocorreu por duas ou três semanas até perceber que se eu continuasse assim, eu morreria de outra coisa que não coronavírus. Cada salsicha consumida reduziu uns cinco anos na minha expectativa de vida. Eu havia, literalmente, abraçado a derrota.
Organizei uma agenda no meu quadro branco do escritório com divisão dos dias da semana. Retomei uma jornada de trabalho de, no máximo, oito horas diárias e desabilitei as notificações do e-mail corporativo do meu celular. Voltei a utilizar despertador para acordar em um horário mais digno, retomei uma série de exercícios físicos no período da manhã e voltei a ter as três refeições diárias. Ainda reclamo muito por ter que cozinhar, mas consegui organizar uma metodologia gastronômica que não me toma muito tempo e me garante o mínimo de nutrientes não baseados em alimentos processados. Claro que parte deste sucesso deve ser reputado à compra de uma fritadeira elétrica que faz boa parte das minhas refeições em poucos minutos.
E quem leu até aqui deve estar pensando: “Uau! Que vencedora! Olha esse exemplo! Possivelmente ela vai dedicar esta coluna a descrever um tutorial sobre como sobreviver a esta quarentena”. Então… Nada disso! Na verdade, esta rotina está sendo feita de forma totalmente mecânica e só a adotei para não ficar tão perdida no tempo como antes. Apesar de estar com uma alimentação balanceada, ter secado quatro quilos e conquistado um gominho na barriga por causa das tantas abdominais diárias, a minha mente está bem abalada. Tão lesada que comecei esta coluna diversas vezes e não consegui pensar em nenhum tema.
Em geral, minha inspiração para escrever aqui sempre veio das idas ao cinema, ao teatro, às exposições, viagens que tanto amo fazer, observar as pessoas, escutar conversas alheias no transporte público ou qualquer saída rotineira para a rua. Presa em casa, só me restam as lives de músicos, algumas séries e filmes que quebram o galho. Eu só vi uma live. Vi e fiquei deprimida. Fiquei pensando que se este é o futuro dos shows, não sei se vou querer sobreviver a esta pandemia. Eu sempre amei ir a show, incluindo o perrengue. Eu amo tudo em um show: o aperto, o cansaço, a dificuldade para chegar, a muvuca, a água que é vendida a preço de ouro, o desespero de ter que correr atrás da lotação por não ter mais transporte público para voltar para casa. A sensação de estar sendo esmagada no meio de uma multidão é compensada com o som ao vivo de uma banda.
O mesmo amor também vale para cinema. Eu até o o barulho da pipoca (sim, eu sou a pessoa que defende a proibição de pipoca em salas de cinema) para poder experienciar o escuro e me deliciar com uma tela gigante diante dos meus olhos. Em especial, as últimas sessões foram na companhia de uma grande amiga que me renderam boas lembranças. Depois de cada filme a gente parava para um café com torta de doce de leite. Ah, que saudades daquela torta!
E depois de tantos devaneios, como chegar ao ponto da minha coluna? Bom, depois de muito refletir, e por estar afastada dos meus programas culturais e privada da minha liberdade de ir a pé para tantos lugares que amo, fiquei pensando neste sentimento de estar confinada e sem contato com coisas que gosto tanto de fazer. Essa sensação me fez lembrar das pessoas que são presas e que ficam na cadeia por anos.
Eu já tive a experiência de visitar vários presídios, muitas das vezes em razão da minha atuação em direitos humanos durante anos. Curioso lembrar que todas as vezes que eu já estive em um presídio, dias depois eu sempre tive febre. Até hoje guardo na memória o cheiro dos presídios e o som das grades se fechando atrás de você quando você entra naquele espaço. Todas as vezes que ei por esta experiência, eu voltava para casa e ficava semanas pensativa e questionando a humanidade da nossa sociedade por ainda aceitar esse modo de punição. No entanto, em que pese todas estas experiências terem me marcado profundamente, eu nunca ei mais que algumas horas na cadeia. Estar de quarentena em casa, com o a coisas e a pessoas que tanto amo, mesmo tendo a liberdade para sair quando eu quiser e puder, me fez pensar nas pessoas que am anos atrás das grades. Como é possível defender um sistema que priva a liberdade do ser humano, limita o o a atividades prazerosas, regula a visita de amigos e parentes e ainda assim acreditar que alguém pode sair melhor desta experiência?
Na última semana tive uma mistura de sentimentos ruins. Ansiedade, raiva, tristeza e desespero permearam várias das minhas noites. E eu estou no conforto da minha casa, com os privilégios de ar a comida que quero, escutar a música que gosto e conversar – mesmo que à distância – com amigos e familiares. Como é possível despertar sentimentos positivos em uma pessoa presa?
Nosso sistema penitenciário sempre é objeto dos noticiários e muita gente fala dele sem nunca ter pisado numa cadeia. Em geral, o senso comum, fruto do desconhecimento sobre a realidade e impulsionado por uma mídia irresponsável, acredita que as pessoas presas desfrutam de regalias na prisão e que o Estado gasta volumosos recursos públicos na manutenção de pessoas que violaram a lei. O que poucos sabem, e pouco se dá visibilidade a respeito, é que a situação nos presídios brasileiros é abaixo das condições para qualquer ser humano viver. Recentemente, no programa do Observatório do Terceiro Setor, Brasil Cidadão, Marianna Haug, advogada e pesquisadora do Projeto Mulheres Migrantes do Instituto Terra, Trabalho e Cidadania (ITTC), e Henrique Apolinario, comentaram sobre os efeitos da pandemia no sistema penitenciário.
A Declaração Universal dos Direitos Humanos elenca o direito à liberdade logo após o direito à vida, por reconhecer sua importância para a dignidade do ser humano. No artigo 5º veda qualquer punição equiparável à tortura, tratamento ou castigo cruel, desumano ou degradante. E a liberdade é um direito tão valioso que os artigos 8º a 11 são dedicados às garantias do processo penal, isto é, eles garantem a qualquer pessoa o direito a um processo idôneo, público, fundado em provas e que a punição não seja desarrazoada.
Tão degradante é a situação nos cárceres como é degradante nosso sistema punitivo. Mais de 30% das pessoas encarcerada são presos provisórios, ou seja, ainda não foram condenadas. E a taxa de crescimento da população carcerária tem aumentado 2% nos últimos anos. Em termos mais concretos, o Brasil conta com 773.151 pessoas privadas de liberdade em todos os regimes. Todos estes dados podem ser conferidos através do INFOPEN, que é o Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias do Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN). O que estes dados nos dizem?
Em primeiro lugar, é preocupante pensar que mais de meio milhão de pessoas estão presas e um número significativo delas sequer cometeu um delito. Há várias associações que trabalham para combater os erros judiciários, dentre as quais destaco Innocence Project, que tem atuação em mais de 57 países do mundo. No Brasil, ela existe desde 2016 e atua em rede com as demais organizações espalhadas pelo mundo.
E erro judiciário é mais comum do que se imagina. O tema já foi objeto de vários filmes, dos quais destaco o clássico Em Nome do Pai (In the Name of the Father), de 1993, dirigido por Jim Sheridan e com Daniel Day-Lewis como protagonista. O filme é baseado numa história real a respeito da condenação de um jovem irlandês (Gerry Conlon, interpretado por Daniel) e outros três amigos acusados de um atentado do IRA em um pub na cidade inglesa de Guilford, próxima a Londres. Os jovens são condenados a prisão perpétua até o momento em que a advogada Gareth Peirce (Emma Thompson) assume o caso e verifica uma série de irregularidades no processo investigativo.
E erros judiciários ocorrem porque o sistema é formado por pessoas íveis de falhas e que, por vezes, imersas em seus preconceitos, são incapazes de reconhecer os próprios privilégios e enxergam a humanidade no outro, condenam baseadas muito mais em convicções do que em provas. É o que chamamos de seletividade do sistema judiciário. Recentemente assisti a um interessante filme italiano sobre como o sistema protege pessoas privilegiadas chamado Investigação sobre um cidadão acima de qualquer suspeita (Indagine su um citadino al di sopra di ogni sospetto), de 1970, dirigido por Elio Petri, cineasta italiano famoso pelas críticas ao modelo autoritário italiano de repressão a dissidentes políticos. O filme retrata a história de um inspetor de polícia (Gian Maria Volonté) que assassina sua amante (Florinda Bolkan), e que planta várias pistas óbvias na cena do homicídio para incriminá-lo apenas para testar a seriedade da investigação. Mesmo com suas digitais espalhadas por toda a casa onde ocorreu o crime e coletadas pelos peritos, todos ignoram as evidências em razão de seu cargo político. O filme retrata os abusos de autoridade, as formas degradantes utilizadas nas delegacias para obtenção de confissões e a distorção do sistema de justiça, utilizado muito mais para reprimir do que para libertar a sociedade.
Em segundo lugar, vejo como absurdo surreal vivermos em uma sociedade que ainda não pensou em outra forma de punição além do encarceramento e a privação de liberdade. Aliás, nosso sistema prevê outras penas, tais como a multa ou restritivas de outros direitos além da liberdade, mas o sistema judiciário ainda replica com mais vigor as penas restritivas de liberdade, em especial quando aplicadas a minorias como pessoas negras e mais pobres. Se estamos diante de um sistema que prende um número significativo de inocentes, por que ainda insistimos neste erro? E mesmo no caso de pessoas que cometeram algum tipo de delito, por que ainda insistimos na punição da privação de liberdade? Existem tantas outras formas de punição.
Nos estudos de Cesare Bonesana (Marquês de Beccaria), sua clássica obra “Dos delitos e das penas”, que é leitura obrigatória em qualquer curso de Direito, a crítica ao sistema punitivo já existia. Este livro, inspirado nas teorias contratuais de Rousseau, inaugura o humanismo iluminista do século 18 (sim, isso mesmo, já no século 18 algumas pessoas tinham ideias mais avançadas do que de outras pessoas do atual século 21) e desperta ideias revolucionárias para a época sobre a justiça criminal. Nesta obra, já são apontados problemas que ainda persistem no sistema atual: por um lado o uso da lei em benefício de uma minoria da população para acúmulo de privilégios e renda; do outro, a aplicação da lei como forma de repressão e controle social.
Séculos depois, outra obra que aborda de forma crítica os sistemas penais ocidentais da era moderna é “Vigiar e Punir: Nascimento da Prisão”, de Michel Foucault, de 1975. Esta obra, além das prisões, também examina outros mecanismos sobre vigilância e punição de entidades estatais como os hospitais e as escolas. Foucault é complexo, e o livro faz uma análise do sistema de vigilância e punição do século 17 a 19, mas o mais importante reside na crítica sobre a forma que o Estado pretende “disciplinar” seus cidadãos. Para tanto, o Estado cria mecanismos para classificar as pessoas como sãs ou loucas, normais ou anormais, sadias ou doentes, boas ou delinquentes. Para Foucault, há o deslocamento do problema da infração à norma para a anormalidade da conduta desviante do indivíduo.
Para ilustrar essa visão crítica que tenho sobre o modelo estatal de punição e reinserção do indivíduo na sociedade, acredito que não exista exemplo melhor do que o clássico livro “Laranja Mecânica” (A Clockwork Orange), de Anthony Burgess, de 1962. Tanto o livro como a adaptação para o cinema por Stanley Kubrick em 1971. Apesar de ser uma distopia, a obra demonstra quão falível é o sistema de reabilitação prisional. Alex (Malcolm McDowell) é o protagonista que é líder de uma pequena gangue de jovens que gostam de causar a desordem social. De perfil sociopata, Alex lidera vários crimes e, em um deles, acaba sendo preso e levado à prisão. Durante seu cumprimento de pena, especialistas em reabilitação prisional apresentam ao diretor do presídio uma nova técnica de condicionamento psicológico denominada “Ludovico”, que é colocada como eficaz para garantir que qualquer ex-detento, uma vez colocado em liberdade, volte a delinquir. Como já mencionei, apesar de ser uma distopia, a narrativa flerta com a realidade dos sistemas prisionais e de correção social. O filme é uma crítica para além do sistema prisional, abordando também teorias sobre o totalitarismo dos governos e desrespeito ao livre arbítrio dos cidadãos.
Depois de tantas idas e vindas, citações teóricas, filmes e relatos sobre minha monótona rotina, onde pretendo chegar com este texto? Bom, tenho visto várias discussões, seja na televisão, seja na internet, sobre as mudanças pelas quais a sociedade irá ar em razão da pandemia. Muitos opinam que sairemos melhores, mais solidários, mais colaborativos; outros acreditam que sairemos piores, mais ansiosos, mais depressivos e mais egoístas. Outras discussões são no sentido do reconhecimento de privilégios e como nossas desigualdades sociais ficaram mais afloradas e perceptíveis. Minha opinião sobre tudo isso não importa porque penso que toda esta experiência pela qual estamos ando não é possível de ser analisada no atual momento. Todo ponto de vista enxerga apenas um aspecto do todo e os exercícios de futurologia são palpites feitos em webinars espalhados pela internet. Mas o que tenho mais refletido nestas últimas semanas, e foi isso que me inspirou a escrever este artigo, é a angústia gerada pelo cerceamento da liberdade.
Como já mencionei no início deste texto, se a Declaração Universal de Direitos Humanos coloca a liberdade logo após o direito à vida, entendo que este é um dos maiores bens que uma pessoa pode ter. E experienciar a falta dela me fez perceber quão valiosa ela é. Se eu já era uma feroz crítica ao sistema punitivo de cerceamento de liberdade, esta pandemia me tornou uma crítica ainda mais radical.
Se as pessoas que estão em suas casa estão angustiadas, tristes, depressivas, ansiosas, dentre outros sentimentos ruins, mesmo estando no conforto de suas casas – por mais simples que sejam – quais sentimentos esperamos despertar nas pessoas que tem suas liberdades cerceadas em um local muito mais inóspito que o próprio lar?
Se existe uma reflexão que penso ser urgente de ser despertada no debate público é a reflexão sobre o nosso sistema prisional e punitivo. Se a humanidade sobreviver a esta pandemia e não desenvolver um outro sistema de punição, talvez não terá aprendido lição alguma e o mundo permanecerá do mesmo jeito até a próxima pandemia.
*A opinião dos colunistas não reflete, necessariamente, a opinião do Observatório do Terceiro Setor.