Brasil não sistematiza dados sobre violências contra crianças e adolescentes
32 anos após a criação do Estatuto da Criança e do Adolescente, país ainda não possui sistema para analisar e combater violências contra crianças e adolescentes

Por Juliana Lima
Sancionado em 13 de julho de 1990, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) reconhece 23 tipos penais específicos para proteger as crianças e adolescentes do país. Após 32 anos, no entanto, o Brasil não possui um sistema unificado sobre os registros de violências contra esse público, e ainda apresenta grandes subnotificações para alguns crimes.
É o que diz o Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2022. Em seu capítulo destinado às violências contra crianças e adolescentes, o estudo apresenta, pela primeira vez, o panorama geral da violência em todo o país, com dados alarmantes como o que mostra que, em 2021, 2.555 crianças e adolescentes de 0 a 17 anos foram mortas no Brasil.
Violências não-letais
Um dos primeiros tipos de violência analisados pelo estudo é o abandono de incapaz, que teve 7.908 registros no país em 2021, um aumento de 11,1% em relação ao ano anterior. Embora o aumento seja presente em todas as faixas etárias, o documento pontua que ele é maior para crianças entre 5 e 9 anos, o que, provavelmente, tem relação com o próprio entendimento do que é abandono quando se analisa crianças com idades superiores a 9 anos. Já sobre o abandono material, que teve apenas 763 registros em 2021, o Anuário comenta uma possível subnotificação, já que a realidade do país é de abandono paternal frequente.
Com alta incidência, os casos de maus-tratos contra crianças e adolescentes de 0 a 17 anos chegaram a 19.136 em 2021, um crescimento de 21,3% em relação a 2020. Já os de lesão corporal em decorrência de violência doméstica chegaram a 18.461.
Segundo o documento, a Lei Maria da Penha é um importante aspecto a ser analisado nesse caso por dois motivos. Primeiro, porque não é incomum que filhos crianças de mulheres vítimas de violência doméstica também sejam agredidos; e segundo, porque a taxa de lesão corporal cresce vertiginosamente entre vítimas de 15 a 19 anos. Para essa faixa etária, foram 20.805 boletins de ocorrência registrados em 2021, o que mostra que meninas são inseridas em relacionamentos agressivos desde cedo.
O último aspecto de violência não-letal analisado pelo Anuário é a violência sexual contra crianças e adolescentes, chamada de “epidemia silenciosa” e dividida em estupros, pornografia e exploração sexual.
Em 2021, foram registrados 45.076 estupros contra crianças e adolescentes menores de 17 anos. Desses, 35.735 eram contra menores de 13 anos. O crime representa 75,5% de todos os casos de estupros registrados no país. De acordo com o documento, os números comprovam o que já vem sendo alertado por especialistas e organizações que defendem crianças e adolescentes: as principais vítimas são crianças, meninas, vítimas de uma violência que ocorre, principalmente, por conhecidos e em ambientes familiares.
Já a pornografia infantil, que inclui a produção, venda, transmissão, distribuição ou aquisição de cena pornográfica envolvendo crianças e adolescentes, possui uma baixa incidência de registros. Ao todo, foram 1.797 em 2021. Enquanto isso, a exploração sexual, que pressupõe um comércio do corpo, teve 733 vítimas menores de 17 anos. Ambos os crimes podem ser investigados pela Polícia Federal, cujos dados não são compilados e não fazem parte do estudo. Mesmo assim, o Anuário pontua que os baixos números sejam indícios de que os delitos ainda sejam pouco investigados no Brasil.
Violências letais
Sabe-se que 2.555 crianças e adolescentes foram mortos em 2021 no Brasil. No entanto, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, os dados não são sistematizados igualmente em todos os estados e os diferentes crimes envolvidos (latrocínio, homicídio, feminicídio, etc) também dificultam a análise.
Nesse sentido, a Lei Henry Borel, criada em maio deste ano, poderá ajudar a padronizar essas informações no futuro. Isso porque a lei tornou crime hediondo o homicídio com vítimas menores de 14 anos. Na prática, isso significa que todos os crimes com essas características serão registrados em uma única categoria.
No entanto, o que já é possível analisar mostra, mais uma vez, uma realidade já anunciada. Das 2.555 mortes registradas em 2021, 2.037 foram de adolescentes entre 12 e 17 anos. Desse número, 83,6% são de vítimas negras e 87,8% do sexo masculino. Ou seja, jovens homens e negros morrem mais no Brasil.
Além disso, os ambientes onde mais ocorrem o crime contra os adolescentes são as vias públicas (43,4%); e o instrumento mais utilizado é a arma de fogo (88,4%). Para o Anuário, é impossível dissociar os números do contexto de violência urbana e violência policial que atinge o grupo citado, embora oficialmente se tenha o registro de apenas 308 óbitos decorrentes de ações policiais em 2021.
Como proteger as crianças e adolescentes
Por ser o primeiro grande esforço em compilar e analisar todos os dados que envolvem os diferentes tipos de violências contra crianças e adolescentes, a nova edição do Anuário Brasileiro de Segurança Pública deixa claro que ainda não é possível traçar padrões sobre os crimes, mas pontua que estudos como esse são fundamentais para análises mais profundas, que possam ser usadas de forma a prevenir as violências.
De modo geral, o panorama traçado é de grandes desafios. No entanto, diversos atores e organizações da sociedade civil estão atuando para combater e prevenir violências bem como proteger as crianças e adolescentes do país. Entre elas, estão as que ajudaram na elaboração do estudo como o Instituto Galo da Manhã, o Instituto República, o Instituto Betty e Jacob Lafer e a Fundação José Luiz Egydio Setubal (FJLES).
Márcia Woods, assessora da FJLES, comenta a atuação:
“A FJLES apoiou o Fórum Brasileiro de Segurança Pública com recursos para a pesquisa e produção do capítulo sobre violência contra a criança e adolescente. Essa contribuição é muito importante para entendermos o fenômeno da violência contra crianças e adolescentes, pois só assim vamos conseguir, como nação, ter medidas efetivas para enfrentá-las”.