As jaulas de Trump e os Novos Eichmann
“A vida pode ser brilhante na América – se você pode lutar na América
A vida vai bem na América – se você for um branco na América”.
Trecho de America, de West Side Story (tradução livre da autora)
Em 1964, Hannah Arendt (filósofa alemã de origem judia e importante autora na área da Filosofia Política relacionada aos Direitos Humanos) publicou seu livro ‘Eichmann em Jerusalém – um relato sobre a banalidade do mal’, escrito a partir de sua viagem à Jerusalém na qual acompanhou o julgamento de Adolph Eichmann, oficial alemão acusado de operacionalizar deportações que acabavam por conduzir judeus e outros povos perseguidos pelo Terceiro Reich para os campos de concentração.
Nessa obra, Arendt relata não ter lá encontrado o “monstro sanguinário” e “assassino” que esperava, mas sim um burocrata que “cumpria ordens” sem maiores reflexões a respeito. É neste livro que Arendt formula o hoje conhecido conceito de “banalidade do mal”, em referência a atrocidades que, de tão naturalizadas (seja porque incorporadas a uma estrutura cultural, seja porque positivadas em normas jurídicas de moralidade duvidosa), parecem banais àqueles que as praticam. O conceito é de grande utilidade para refletirmos sobre os processos de violência e violações sistemáticas de Direitos Humanos, pois permitem compreender que não se tratam de atos de maldade individual, mas sim de sistemas inteiros que somente persistem porque não são questionados por aqueles que os integram: esses sistemas despersonalizam também seus executores, vistos (por si mesmos e pelos demais) como meras engrenagens sem qualquer possibilidade de atuação diante de uma catástrofe determinada por mãos humanas.
Como sabemos, as “maldades” sistematicamente banalizadas praticadas no contexto do Holocausto deram origem aos sistemas internacionais de proteção aos Direitos Humanos: longe de serem perfeitos, e íveis de muitas críticas (tais como distorções de uso político e seletividade de casos ao fechar os olhos para muitas violações praticadas por regimes de todo tipo de espectro político, da extrema esquerda à extrema direita), ainda assim podem (e, talvez, devam) ser empregados como balizas mínimas para se evitar novos atos sobre os quais recaia o entendimento consensual da comunidade internacional de consistirem em atrocidade inissível.
Pois bem. Recentemente, foi divulgada na imprensa a prática adotada pelo governo norte-americano de separar crianças pequenas de seus pais e mães, em razão destes estarem tentando atravessar a fronteira para os Estados Unidos ilegalmente. Fotos de meninas e meninos mantidos em jaulas, e, segundo informado em reportagens, alimentados por água e batata frita. De acordo com algumas fontes, chegou a ser gravado o choro de crianças desesperadas, chamando por seus pais.
Embora tenha sido um dos países fundadores das Nações Unidas (sendo, aliás, um dos membros permanentes do Conselho de Segurança da organização), cuja sede fica, justamente, em Nova York, os Estados Unidos não são lá uma nação muito afeita a compromissos internacionais relativos ao exercício e à garantia dos Direitos Humanos: não só suas práticas, mas também sua falta de ratificação de instrumentos internacionais demonstram esse argumento. A Convenção de Viena é o tratado que regulamenta juridicamente os tratados internacionais, estabelecendo as formas de manifestação de consentimento do Estado, de reservas, objeções a reservas etc. Nos tratados sujeitos a ratificação, aceitação ou aprovação, a não estabelece o consentimento em se vincular. É considerado, porém, um meio de autenticação e expressa a disposição do Estado signatário para continuar o processo de elaboração de tratados, além de qualificar o Estado signatário a proceder à ratificação, aceitação ou aprovação, e de criar a obrigação de abster-se, de boa fé, de atos que vão contra o objeto e o fim do tratado.
Os Estados Unidos chegam a os tratados de Direitos Humanos – que é o primeiro o para sua adoção no âmbito interno, como determinado pela Convenção de Viena – mas deixam de ratificá-los; com essa conduta, deixam de se obrigar juridicamente a cumprir o que assinam. É o caso da Convenção dos Direitos da Criança: este é o tratado com o maior número de Estados-membros e com o menor índice de reservas. A prática de separar as crianças filhas de pessoas migrantes e colocá-las em jaulas fere, como é de se esperar, diversos artigos do texto, e poderia ser invocado contra o país em favor das crianças – não fosse o óbice de os E.U.A apenas terem assiado o documento em 1995, sem consignar até hoje sua ratificação, permitindo ao governo norte-americano alegar não estar obrigado a obedecer o tratado, caso questionado a respeito – ainda que a Convenção de Viena disponha, como dito acima, que a cria a obrigação de, no mínimo, se abster de boa-fé de violar os termos do tratado.
Mesmo afastada a aplicação da Convenção dos Direitos da Criança, a prática de colocação de crianças em jaulas após separadas de seus pais viola o Pacto dos Direitos Civis e Políticos (este, assinado e ratificado pelos EUA) ao menos no aspecto da proibição de tratamento desumano ou degradante para qualquer pessoa. Ou ainda, no mínimo, poderia ser invocada a Declaração Universal dos Direitos Humanos – que, embora não seja um tratado, é consenso que o documento constitui fonte do Direito Internacional por reproduzir o costume internacional – e que é assinada pelos Estados Unidos por ocasião da fundação da ONU.
De qualquer forma, ainda que não houvesse normas internacionais a respeito. Ainda que se entenda como juridicamente válido o argumento político norte-americano de não ter aderido aos pactos e, portanto, não precisar se submeter a eles. Ainda que consideremos que Trump se embeveça dos devaneios xenofóbicos de seu eleitorado o suficiente para não se comover com o caso. Ainda que consideremos tudo isso: quero convidar você, leitora e leitor, a pensar comigo sobre, ao menos, os funcionários que estão nesses campos. Há alguém na ponta dessa linha de produção. Assim como houve um Eichmann para mandar trens cheios de gente para os campos de concentração, ou soldados para apertar o botão que liberou bombas nas cabeças de crianças, ou ainda funcionários de regimes ditatoriais à esquerda e à direita torturando opositores, também neste caso há o ser humano que “botou a mão na massa”. Quantas crianças precisarão chorar desesperadas para que os potenciais Eichmann reflitam sobre as ordens imorais que receberam?
Encerro este artigo com o vídeo da música America, da versão cinematográfica do musical West Side Story (Jerome Robbins e Robert Wise, EUA), que já em 1961 tratava com uma beleza contundente o drama dos imigrantes latinos na cidade de Nova York – e a letra da canção continua a ter uma atualidade assustadora.
- “Hannah Aredt – ideias que chocaram o mundo”, de Margarethe von Trotta. Alemanha/França, 2013.
- Veja matérias na Folha de São Paulo e aqui no Observatório do Terceiro Setor .