A mulher que dedica a vida a ensinar crianças marcadas pela violência

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Conheça a história de Yvonne Bezerra de Mello, que desenvolveu uma metodologia de ensino para crianças com dificuldades de aprendizagem devido a traumas provocados pela convivência diária com a violência na comunidade, na família e nas ruas

Por Redação

A verdadeira felicidade para Yvonne Bezerra de Mello sempre foi ensinar crianças a ler e a escrever. De classe média, ela foi criada apenas pela mãe, que trabalhava como funcionária pública. Desde pequena, costumava visitar abrigos para crianças e adolescentes e fazer trabalho voluntário com crianças órfãs e com deficiência.

Aos 17 anos, enquanto participava do Projeto Rondon, ela realizou uma missão humanitária na cidade de Aracati, no Ceará. Lá se deparou com a dura realidade da fome e miséria do país e, para sua tristeza, uma de suas alunas acabou falecendo por conta dessa situação. “Foi naquele momento que eu decidi que nunca abandonaria as crianças. O que eu não poderia imaginar é que a minha vida seria dedicada somente para isso”, diz.

Nesta mesma época, sua mãe trabalhava no gabinete do então presidente João Goulart. Com o golpe militar de 1964, ela temeu pela segurança dos dois filhos e os mandou para fora do país.  Seu irmão foi para os Estados Unidos, enquanto Yvonne foi para a França.

Na Universidade de Paris, fez amizade com refugiados e estes a levaram para conhecer crianças refugiadas com problemas de aprendizado.

Depois que ela terminou seus estudos, com a tese ‘Problemas Cognitivos de Crianças e Jovens em Países em Guerra’, ou a visitar países africanos e ter contato com escolas para ver quais eram as dificuldades das crianças e como melhorar bloqueios emocionais de pessoas que vivem em locais onde a violência é constante.

Após criar a sua metodologia, ela voltou ao Brasil e criou o que chama de “escola sem portas e janelas”. Ela criou grupos de estudos com crianças dos bairros da Candelaria, Copacabana, Madureira e Meier, no Rio de Janeiro. “Essas crianças nunca seriam inseridas em uma escola normal. Se você for esperar por uma estrutura, você nunca vai fazer nada. Então, eu fui com elas para debaixo do viaduto e as ensinei a ler e a escrever. A sociedade as vê como bandidos, mas eu as olhava com amor e dava carinho”, diz.

Todas as noites, após o término das aulas, ela dava uma moeda para cada criança e dizia que, se acontecesse qualquer coisa, poderiam ligar para ela. Na noite do dia 23 de julho de 1993, ela recebeu uma ligação: “Tia, vem pra cá. Estão nos matando”.

Ao chegar no local, encontrou corpos ensanguentados e crianças chorando desesperadamente. Ela as recolheu ao seu redor e as acalmou até que a polícia chegasse. O episódio ficou conhecido como a Chacina da Candelária.

Dois carros do modelo Chevette, com placas cobertas, pararam em frente à igreja, localizada no centro da cidade do Rio de Janeiro, enquanto mais de 40 crianças em situação de rua dormiam. Os homens armados abriram fogo contra elas e mataram seis menores e dois maiores de idade. No decorrer das investigações, foi descoberto que os autores dos disparos eram milicianos.

Por Yvonne ter sido a primeira pessoa a chegar ao local, ela era a principal testemunha do crime. Depois do massacre, foi sequestrada. “Eles me mantiveram amarrada, encapuzada e com um fuzil na cabeça durante umas cinco horas. Eu estava preparada para morrer, mas depois me deixaram em um subúrbio do Rio de Janeiro. Acredito que era o meu destino continuar com o meu trabalho”, conta Yvonne.

Um dos alunos que sobreviveram à chacina era Sandro Barbosa do Nascimento. Yvonne ainda lembra do momento em que o viu pela primeira vez: era um menino magro, de 10 anos, que não conversava muito. Aos oito anos, ele presenciou o assassinato de sua mãe na favela onde moravam. Foi então que virou menino de rua. Sandro frequentou por, aproximadamente, um ano o projeto de Yvonne, e depois desapareceu.

Sete anos depois, ela voltou a saber do seu paradeiro. O jovem sequestrou o ônibus 174, fato este que foi televisionado em todo o país. Encurralado, ele gritava o nome de Yvonne. No fim do sequestro, uma de suas reféns acabou levando um tiro acidental no queixo, disparado pela polícia, e outros três tiros nas costas, estes disparados por Sandro. Com a refém morta, ele foi imobilizado e colocado na viatura com outros policiais. Sandro morreu asfixiado ali dentro.

“Isso me faz pensar na responsabilidade que eu tenho com essas crianças. Depois da mãe, eu fui a única pessoa que ele amou na vida. Mesmo depois de tanto tempo, ele não havia se esquecido de mim. Naquela época não havia celular, então eu só soube do caso no jornal da noite. Se eu tivesse sido avisada a tempo, talvez a história tivesse terminado com um final diferente”, lembra. O caso se tornou tão famoso que, em 2002, se tornou tema de um filme de José Padilha.

Anos depois, a intervenção de Yvonne na vida de um jovem voltaria a ser assunto em todo o país. No dia 31 de janeiro de 2014, amarraram um rapaz negro de 15 anos em um poste na Avenida Rui Barbosa, no bairro do Flamengo, também no Rio de Janeiro. Ele estava sendo acusado de praticar assaltos pela região.

Ao ver o menino nu, espancado e esfaqueado na orelha, amarrado pelo pescoço com uma trava de bicicleta, Yvonne ligou para a polícia e o corpo de bombeiros. “Não importa o que ele havia feito, isso a gente resolvia depois. Ali eu só enxerguei um ser humano. Nunca pensei que salvar aquela vida faria com que tanto ódio se levantasse contra mim. Não existe país no mundo que odeie tanto as crianças quanto o Brasil.”

A boa ação se tornou motivo de perseguição. Yvonne recebeu inúmeras ameaças de morte e teve que sair do país e ficar sem as redes sociais durante quatro meses. O que mais a chocou foi saber que a sociedade não se importou com o trabalho educacional que ela realizava havia mais de 21 anos. Para a sociedade, ela só tinha salvado a vida de “um bandido”.

No entanto, isso não fez com que seu trabalho parasse. Ela voltou a focar então no Projeto Uerê, escola que criou em 1998, que ensina crianças e adolescentes com dificuldades de aprendizagem devido a traumas provocados pela convivência diária com a violência na comunidade, na família e nas ruas.

Localizada na favela da Maré, a iniciativa oferece a essas crianças o Complemento do Ensino Formal, com aulas de português, matemática, história, geografia, ciências e idiomas, e mais oficinas de música, capoeira, canto, violino e informática. Além disso, são oferecidas três refeições diárias.

“A pedagogia vem sendo traçada desde os anos 70. Ela não toca em currículos, mas sim em como conseguir com que essas crianças aprendam. Com o tempo avançando, eu tive a ajuda da neurociência e da neuroeducação, que me permitiram entender o cérebro, os bloqueios e as sinapses. Eu tracei um método que contempla cerca de 10 inteligências e faz com que as aulas sejam lúdicas e que as crianças sejam felizes naquele espaço”, diz.

Segundo ela, mais de 300 escolas brasileiras usam a sua metodologia, mais de 18 mil professores foram capacitados e 200 mil alunos beneficiados. E o método funciona com 95% dos alunos.

“No Brasil, muitas crianças não aprendem, mas com uma mudança de paradigma as coisas podem melhorar. Essas crianças me inspiram e é por elas que eu faço o meu trabalho. Vou continuar lutando até o último dia da minha vida por elas”, conclui.


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