Saúde mental como um direito humano

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Trilha sonora para ler este texto: Amarelo, Emicida

Na manhã do dia 20 de agosto de 2019, um ônibus da viação Galo Branco na ponte Rio-Niterói foi parado e seus ageiros foram feitos de reféns por um homem que carregava uma garrafa e uma arma de brinquedo. Todos já conhecem o desfecho deste caso: o homem foi baleado e morto por franco-atiradores do Batalhão de Operações Especiais (BOPE) e minutos depois um helicóptero pousou na ponte com o governador do estado do Rio de Janeiro celebrando a morte de uma pessoa.

O fato foi noticiado em diversos jornais comparando o ocorrido com o sequestro do ônibus 174 no ano de 2000 e que virou filme (Ônibus 174), com direção de José Padilha e Felipe Lacerda. A comparação se deu pela crise de segurança que o estado do Rio de Janeiro vem enfrentando há anos. O descaso do poder público, a falência deste estado perante o crime organizado, a ausência de investimento em programas sociais e a tão gritante desigualdade entre ricos e pobres são apenas alguns dos elementos da histórica situação de violência urbana tão presente não somente no Rio de Janeiro como em tantas outras cidades brasileiras.

Mas o caso mais recente me chamou atenção por um outro motivo. Na coletiva de imprensa, o governador Wilson Witzel afirmou que o homem que havia sequestrado o ônibus sofria de transtornos mentais e que a família receberia todo o apoio do Estado. Este detalhe, que entendo ser tão importante, foi pouco noticiado. Quase todas as notícias que li se referiram ao homem como “bandido”, “marginal”, “delinquente”, o próprio Presidente da República, Jair Bolsonaro, se manifestou no seu Twitter como “criminoso neutralizado”. Foi na notícia veiculada no El País que encontrei mais detalhes sobre o fato. Segundo este jornal, o homem, identificado como Willian Augusto Nascimento, tinha apenas 20 anos, não possuía nenhum antecedente que justificasse sua periculosidade e sofria de alguns transtornos mentais.

É contraditório, senão dizer perverso, que o governador oferece apoio à família somente depois que uma pessoa foi morta. A solução apresentada pelo Estado é cruel, ao invés de investir em políticas sociais, a solução encontrada é o abatimento de uma pessoa. Não há financiamento suficiente para o desenvolvimento das políticas de saúde e sequer qualquer estrutura de programas sociais para seus cidadãos.  Mais perverso é ler que um dos familiares de Willian foi a público pedir desculpas à sociedade pelo incidente. Não compreendo o motivo de a família vir a público para se justificar pelo fato de ter uma pessoa com problemas de saúde. Não é culpa de ninguém ter alguém na família que precisa de ajuda, muito menos culpa por enfrentar algum problema de saúde. Doenças mentais são como doenças do corpo, algumas são causadas, algumas são genéticas, algumas são tratáveis, outras não, mas é fato que ninguém escolhe tê-las.

Não pretendo me aprofundar em um tema que não é da minha especialidade, mas é fato que a nossa sociedade está repleta de pessoas com problemas de saúde mental e pouco se dá atenção a isso. Se a questão é patológica ou não, fato é que o ambiente que nos rodeia contribui para o desenvolvimento de problemas mentais. E a forma como isso se manifesta se dá pelas mais diversas maneiras. Vale já adiantar que também não estou a afirmar que toda pessoa com algum distúrbio pode se tornar alguém nocivo para a sociedade, mas é fato que por vezes pessoas que são classificadas como “perigosas” e que “devem ser neutralizadas” na realidade deveriam estar sendo alvo de proteção e não de extermínio, como foi o caso de Willian.

É importante refletirmos sobre o tema porque qualquer um de nós está sujeito a problemas relacionados à saúde mental. Quase todos os dias converso com alguém que me diz ter sido diagnosticado com algum distúrbio, que está com dificuldades para dormir ou que a noites em claro, que vive com ansiedade, que chora constantemente sem entender o motivo. Eu tenho vários exemplos na minha família de pessoas depressivas e ansiosas, e convivi com isso a maior parte da minha vida. E para não me apresentar como exceção, eu, que me achava tão forte, que apenas tinha algumas noites de insônia, tive uma crise de ansiedade no final do ano ado quando estava terminando minha tese de doutorado.

Um domingo, eu acordei e simplesmente não conseguia sair da cama. Sentia todos os meus músculos travados, dificuldade para respirar e ao tentar levantar, desmaiei e fiquei desacordada por um bom tempo. O psicológico ou a fisiológico, meu corpo não respondia e demorei semanas para sentir as forças voltarem. Tive apoio da família, dos amigos, dos colegas do trabalho, de um terapeuta e de um remédio prescrito por um psiquiatra. Um remédio que me tirava o medo, mas também me tirava o “filtro” social. Respondia a todos com uma sinceridade que beirava a grosseria. Sentia que Dercy Gonçalves habitava dentro de mim e não conseguia segurar as palavras. Por sorte, meu chefe, meus colegas de trabalho e meus amigos encararam tudo com bom humor. Por sorte, por Deus, pelo destino, pelo fato de eu ser uma pessoa privilegiada, o que foi uma crise não se tornou algo mais grave. Sou uma pessoa que tenho recursos e pude cuidar de mim, contei com pessoas que estiveram ao meu lado recordando que aquilo ia ar e, mesmo levando um tempo, sinto que ou. Claro que hoje meu medo é outro, toda vez que sinto o corpo cansado, acho que vou ar pelo mesmo episódio, mas o medo se dissipa ao lembrar dessa rede de apoio. No entanto, ter uma experiência como essa me faz pensar na quantidade de pessoas que não possuem os mesmos recursos – financeiros e humanos – que eu tenho. E também reflito como essa crise poderia ter se manifestado de outro modo. Eu não consegui levantar da cama, mas eu poderia ter tido algum surto, eu poderia ter tentando contra a minha vida, isso poderia ter afetado minha personalidade, meu modo de enxergar o mundo, meu desempenho profissional e/ou intelectual. Enfim… são inúmeros os efeitos que um episódio como esse pode acarretar na vida de alguém.

A saúde é consagrada no artigo 25 da Declaração Universal de Direitos Humanos e prevista como direito social no artigo 6º da nossa Constituição Federal. Sistema internacional e direito brasileiro preveem que o Estado tem o dever de garantir saúde mínima aos seus destinatários. O Ministério da Saúde é responsável pela Política Nacional de Saúde Mental, que envolve estratégias e diretrizes de tratamentos e cuidados específicos em saúde mental. Os destinatários dessa política são as pessoas com necessidades relacionadas a transtornos mentais como depressão, ansiedade, esquizofrenia, transtorno afetivo bipolar, transtorno obsessivo compulsivo, pessoas com quadro de uso nocivo e dependência de substâncias psicoativas como álcool e outras drogas. Ou seja, somos todos nós!

Essa política se materializa por diversos serviços como o Centro de Valorização da Vida, de prevenção ao suicídio, a Rede de Atenção Psicossocial, os Centros de Atenção Psicossocial, os Serviços Residenciais Terapêuticos, as Unidades de Acolhimento, os Ambulatórios Multiprofissionais de Saúde Mental, as Comunidades Terapêuticas, dentre outros que podem ser programas desenvolvidos pelos estados ou municípios, dentro da política estadual ou municipal. A página oficial do Ministério da Saúde descreve em detalhes o que são cada um destes serviços, quem são seus destinatários e como é possível á-los. Mais interessante é o caráter educativo da página que pretende combater alguns estigmas relacionados a qualquer um desses transtornos, informando que qualquer pessoa pode desenvolver por qualquer motivo, tais como problemas familiares, dificuldades financeiras, momento da vida – adolescência ou envelhecimento, término de relacionamentos, falecimento de pessoas próximas, traumas, fatores genéticos, desemprego.

Em que pese haver formalmente uma política com diversos serviços, sabemos que seu o e a estrutura destes programas são precários. Fato é que o contexto sociopolítico brasileiro atual não está contribuindo para a nossa saúde mental e que as últimas ações governamentais demonstram que haverá menos recursos destinados para a área. Ainda na página do Ministério da Saúde, há uma lista de sugestões para manter a saúde mental, sendo elas: jamais se isole, consulte o médico regularmente, faça tratamento terapêutico adequado, mantenha o físico e o intelectual ativos, pratique atividades físicas, tenha alimentação saudável, reforce os laços familiares e de amizades. Parece simples, mas eu realmente gostaria de saber como o trabalhador comum brasileiro poderá colocar em prática todas essas sugestões quando ele a maior parte do seu tempo se deslocando de sua casa para o trabalho, quando o custo de alimentos mais saudáveis é maior do que industrializados, quando a atividade física principal do brasileiro é correr atrás do ônibus para não chegar atrasado ao trabalho. Como garantir a sanidade mental, se vivemos em uma realidade desprovida de quase todos os demais direitos? Quais são de fato as políticas de saúde mental que temos em concreto para evitar que mais pessoas adoeçam? A Organização Mundial da Saúde já desenvolveu uma série de relatórios com recomendações aos países afirmando que a saúde mental depende de bem-estar físico e social. Dentre os fatores que colocam em risco a saúde mental das pessoas está a violação dos direitos humanos. Significa dizer que desequilíbrio mental vai além de transtornos patológicos e causas genéticas, Estado e sociedade são gatilhos que podem atuar diretamente no desequilíbrio de qualquer pessoa. E retomando para a nossa atual realidade brasileira, o cenário social se mostra desolador.

Recentemente vi uma entrevista do músico Emicida ao jornal Nexo em que ele aborda este tema. Todos estamos com a saúde mental comprometida, da pessoa mais rica até a mais pobre. A diferença é que a pessoa mais pobre terá mais dificuldades para ar um tratamento adequado, seja por falta de tempo, seja por falta de dinheiro, seja pela cultura. Quando depressão é enxergada pela maioria das pessoas como “frescura”, o maior obstáculo talvez seja reconhecer a sua existência para assim poder enfrentá-la.

E para ampliarmos o debate e estarmos conscientes que a questão envolvendo a saúde mental e a falência das políticas para este direito não se resume ao contexto brasileiro, penso que o filme “Coringa” ilustra muito bem o que inúmeras pessoas enfrentam quando possuem algum problema mental. Na realidade, a ideia dessa coluna surgiu exatamente depois que fui assistir a esse filme, que realmente mexeu comigo. Já adianto que é possível que eu apresente alguns spoilers do roteiro, portanto se você ainda não foi ao cinema, sugiro ver o filme antes de continuar a ler as próximas frases.

Não sou crítica de cinema e, para quem quiser ver uma análise mais detalhada sobre direção, construção de personagens, fotografia, trilha sonora ou outros elementos do filme, sugiro dois interessantes canais do Youtube que são especializados em críticas da sétima arte: Super Oito e Meus Dois Centavos. Os dois canais já gravaram vídeos a respeito de “Coringa” e apresentam detalhes cinematográficos descritos por dois especialistas no tema. Os dois apresentadores também apontam críticas de elementos da sociedade e que nos fazem refletir sobre várias camadas trazidas pelo filme.

“Coringa” é a construção de um personagem, é a gênese de um vilão, mas apresenta tantos temas que poderia escrever páginas e páginas sobre todas as críticas sociais contidas nesse filme, mas o ponto que quero destacar para esta coluna é a sequência de tragédias na vida de uma pessoa, levando-a a cometer três homicídios e depois ar a encontrar equilíbrio interno promovendo o caos social. A narrativa tem início na apresentação de uma cidade em que já existe o caos. Há uma greve dos funcionários da limpeza e o lixo se acumula nas calçadas da cidade. As pessoas vivem na lógica individualista, cada um cuida de si, faz o mínimo possível para a convivência ser possível e não há empatia por aqueles que são diferentes. Os colegas de trabalho de Arthur Fleck zombam dele e de um outro colega que tem baixa estatura, em alguns momentos; o chefe dele não faz o mínimo de esforço para entender fatos que ocorreram; o prédio onde ele mora carece de estruturas básicas; o serviço de atendimento psicossocial se reduz a conversas rotineiras e indicação de medicamentos e a única diversão é assistir a programas de televisão de auditório.

Há vários episódios que nos fazem compreender como Arthur Fleck se tornou Coringa. Assédio moral pelo chefe, demissão injusta, perseguição por colegas de trabalho, abuso na infância, ironias do apresentador Murray Franklin e violência física são alguns desses elementos que contribuem para o acúmulo de frustrações e revoltas. Soma-se a isso um tratamento precário, oferecido pela rede de assistência social que é descontinuada por falta de recursos públicos. Nenhum dos atos de Coringa é justificável, mas a sua revolta se torna compreensível. Tão compreensível que amos a sentir empatia pelo personagem e ficamos com sentimentos dúbios em relação a ele. A série de fatos que são apresentados pelo filme, aliada ao total desconhecimento da classe mais rica – personificada por Thomas Wayne – a respeito da realidade vivida pelos mais pobres, acaba por nos despertar um sentimento de pena e revolta. Não há como assistir a Coringa e refletir: como eu reagiria se estivesse nesse papel? Eu continuaria tentando? Eu procuraria um novo emprego? Eu ficaria depressiva? Eu tentaria suicídio? Esta é uma hipótese que o próprio Arthur Fleck cogita ao manipular a arma que tem no momento em que está ensaiando sua participação para o programa de Murray Franklin.

Assistir Coringa me remeteu diretamente ao caso verídico do sequestro do ônibus em agosto deste ano que narrei no início desta coluna. Willian era uma pessoa que estava pedindo ajuda. Sequestrar um ônibus colocando em risco a vida de outras pessoas não é e nunca será justificável, mas se pensarmos na trajetória que Willian deve ter ado nos últimos dias ou anos, podemos compreender um pouco mais o que ocorreu. Assim como o fato de Arthur Fleck ter sofrido uma série de traumas nunca será uma justificativa para cometer qualquer homicídio, mas contribui para compreendermos um pouco mais da complexidade do ser humano e da vida em sociedade. Vale frisar ainda, pela delicadeza do tema, que não estou a afirmar que toda pessoa que tem algum transtorno ou tenha sofrido algum trauma possa se tornar um homicida ou representar algum perigo para a sociedade. A minha hipótese é que a falta de cuidado da saúde mental é um, dentre outros elementos, que pode levar qualquer pessoa a cometer atos reprováveis contra os outros e contra a si mesmo.

As pessoas não podem ser classificadas como boas ou más em sua totalidade como os atuais governantes insistem em apresentar. Ninguém é tão demasiado mau que mereça ser “neutralizado” com um tiro na cabeça. Assim como ninguém é tão demasiado bom que detém o poder para decidir quem vive e quem morre.

Coringa nos provoca tanto a pensar sobre saúde mental como a estrutura estatal e social que nos é oferecida para alcançarmos um equilíbrio. Como podemos exigir sanidade mental dos cidadãos brasileiros se não temos uma estrutura mínima que garanta os direitos sociais para uma vida saudável? E como manter a sanidade mental diante da manifestação pública de um chefe de Estado que só enxerga como solução a “neutralização” dos indesejados? Eu realmente tenho receio de viver em um país em que, a qualquer momento, se eu apresentar algum surto, por qualquer motivo que seja, eu seja aniquilada por um atirador de elite. O sequestro do ônibus em agosto deste ano comprova a incapacidade do Estado brasileiro em oferecer apoio social e utilizar da violência como resposta a problemas causados pela ausência de políticas públicas.

O propósito maior deste texto é trazer luz para o diálogo sobre o tema. Penso ser importante nos mobilizarmos em nível macro e micro. Macro porque precisamos nos articular politicamente, nas esferas municipais, estaduais e federal, para que a política pública de saúde seja efetivada, discutindo a prioridade orçamentária para o tema nas câmaras de vereadores, assembleias legislativas e congresso nacional de modo a evitar o sucateamento de serviços que já existem e implantar programas que só estão previstos no papel. Precisamos acompanhar as votações sobre o tema e quanto do orçamento está sendo destinado e efetivado para que programas sociais não sejam descontinuados. E micro porque a responsabilidade não é somente do Estado, mas também nossa. Como estamos nos comportando com nossos amigos e colegas de trabalho? O quanto estamos dispostos a compreender o que as outras pessoas estão ando? O quanto estamos dispostos a ouvir?

Uma das frases do filme que mais me marcou foi no momento em que Arthur escreve em seu caderno que “a coisa mais difícil de se viver com uma doença mental é que as pessoas esperam que você viva como se não tivesse uma doença mental”. A expectativa que temos para que todos sejam “normais” ou sigam o mesmo padrão de vida que os nossos pode ser tão cruel quanto ser agressivo com essas pessoas. O nosso culto à normalidade beira quase a loucura. Retomando o meu próprio exemplo que compartilhei no início deste texto, um dos maiores medos que ei a ter depois da minha crise foi de ter novamente uma crise. Minha ansiedade recai sobre a necessidade de permanecer “normal” e não “travar” novamente. Cada noite que tenho insônia, penso que estou começando a ficar doente novamente. É muito difícil ter que assumir as fragilidades e reconhecer que não nos encaixamos no padrão esperado da sociedade. E a angústia fica ainda maior quando percebemos que as pessoas próximas de nós não compreendem as limitações que estamos enfrentando. Talvez esse padrão de normalidade seja impossível de alcançar por qualquer um de nós.

Precisamos ser mais gentis com nós mesmos e com as pessoas que estão ao nosso redor, estejam elas ando por momentos mais sensíveis ou não. Às vezes, a imagem de equilíbrio mantida pelas pessoas esconde um pedido de socorro. A gentileza consiste no respeito ao tempo que cada pessoa precisa para se reencontrar e também aceitar como cada pessoa é. Saber ouvir e respeitar as fragilidades alheias é reconhecer a humanidade do outro e também se tornar mais humano.

 

PS: dedico este singelo texto ao meu terapeuta que há mais de dois anos me escuta semanalmente e que, dentre tantas outras coisas, contribuiu para que eu percebesse que a minha força está no reconhecimento das minhas fragilidades.

Luciana Marin Ribas

Doutora em Direitos Humanos pela Universidade de São Paulo, Mestra em Direito Constitucional pela PUC-SP, onde também se graduou em Direito. Pesquisadora da Clínica Luiz Gama de Direitos Humanos da USP, dedica-se ao estudo de temas envolvendo educação em direitos e exercício da cidadania.

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