Direitos humanos e cultura: qual a conexão?
Antes de falar um pouco sobre este tema e a escolha para explorar a relação entre direitos humanos e cultura, acredito ser importante falar brevemente sobre a minha história e quem sou. Quando sabemos um pouco mais sobre os(as) autores(as) dos textos que lemos, conseguimos compreender melhor sobre seu ponto de vista e seu lugar de fala.
Meu minicurrículo expõe uma parcela da minha trajetória acadêmica: acabei de defender meu doutorado em direitos humanos, em 2014 finalizei meu mestrado e em 2009 concluí minha graduação em Direito. Mas estas titulações não mencionam que eu sempre sonhei ser cartunista, que em 2000 eu fiz um curso de histórias em quadrinhos, mas que, por qualquer motivo que não vem ao caso, acabei escolhendo fazer uma faculdade totalmente diferente daquela sonhada durante a adolescência. Se fiz uma escolha certa ou errada, jamais saberemos. Continuei a desenhar apenas como hobby e me dei conta que a escolha de uma profissão ou de um curso é apenas uma parcela do quem somos como pessoas, que ser advogada e desenhista são dois ofícios que não se excluem, que, a depender do contexto, podem ser complementares e que nunca é tarde para voltar a rabiscar no papel.
Com a carreira de artista em pausa, foi na faculdade de Direito que ei a entender melhor a estrutura da sociedade, as regras sob as quais ela se desenvolve e pude constatar que muitas destas regras foram pensadas por pessoas que reproduzem preconceitos e estereótipos responsáveis pela perpetuação de violências contra um número incontável de outras pessoas (em futura oportunidade irei explorar sobre o conceito filosófico desenvolvido por Hannah Arendt sobre a banalidade do mal e crise do positivismo na Segunda Guerra Mundial). E que direitos humanos são uma das tentativas para combater essas violações e tentar compensar algumas destas regras que ainda permanecem em nosso ordenamento.
Ao receber o convite para fazer parte do time de colunistas do Observatório do Terceiro Setor, fiquei muito honrada e refleti muito sobre a abordagem que gostaria de fazer de modo a contribuir para um debate mais fluido sobre o tema. Direitos humanos são um conceito que, por muitas vezes, é interpretado de forma bastante distorcida. Maíra Zapater, em seu primeiro artigo para a coluna que ela escreve sobre o tema neste portal (Direitos Humanos: você sabe o que é?), aborda essa questão e confesso que compartilho da mesma impressão dela. É senso comum relacionar direitos humanos a determinados preconceitos em relação a algumas minorias. Minha hipótese é que esta ideia seja fruto da disseminação em massa de parte da nossa mídia irresponsável que desempenha mais a função de rear informações baseadas mais em convicções do que em fatos concretos.
No entanto, além do papel desempenhado por uma mídia perversa, acredito que parte dessa impressão equivocada sobre direitos humanos é responsabilidade dos acadêmicos e pesquisadores do tema que, em sua maioria, mantêm-se distantes da realidade que aflige grande parte da população brasileira. Reconheço que faço parte desta categoria de privilegiados que tiveram o a educação e que não é capaz de comunicar com outros públicos além dos muros das universidades. Reconheço, ademais, minha dificuldade na construção de pontes de diálogo com aqueles que pensam completamente o oposto de mim. Foi no reconhecimento desta minha fragilidade que resgatei meu sonho engavetado de voltar meu olhar para as artes e cultura em geral.
No decorrer da minha trajetória como pesquisadora e militante em direitos humanos, sempre encontrei dificuldade na comunicação com públicos que tivessem ideias preconcebidas sobre o tema, seja por questões de gênero, raça, classe social ou ideologia. Quando nos deparamos com pessoas que são diferentes de nós ou que possuem trajetórias de vida diferentes das nossas, precisamos desenvolver a empatia para compreender o lugar de fala daquela pessoa e encontrar um ponto em comum para desenvolver qualquer início de diálogo. Foram incontáveis as experiências malsucedidas que já ei e foi por meio da expressão cultural que encontrei maior êxito.
Quando lecionava sobre direitos humanos, tinha muitas dificuldades para fazer com que meus alunos entendessem alguns conceitos bem abstratos de teóricos como Norberto Bobbio, Hannah Arendt, Nancy Fraser, dentre outros que poderei trabalhar com mais profundidade em outros artigos. Para tanto, inspirada em minha professora de História no cursinho pré-vestibular, no decorrer das aulas, eu trazia sugestões de filmes, peças teatrais, dentre outras expressões artísticas para tornar mais compreensíveis alguns conceitos. A narrativa utilizada especialmente em filmes e peças de teatro despertam a curiosidade e auxiliam na compreensão de um determinado ponto de vista. Trata-se de um poderoso recurso pedagógico que nos permite conectar com nosso interlocutor e compreender conceitos que, por vezes, são complexos demais quando tratados de forma abstrata. Não foi por acaso que Paulo Freire alfabetizou milhares de adultos da classe trabalhadora partindo da palavra “tijolo”, objeto familiar a quase todos eles. Ao partirmos de um exemplo concreto e familiar ao nosso interlocutor, facilitamos o processo de aprendizagem estimulando a reflexão e o raciocínio.
Mas o que uma advogada e professora do Direito tem a dizer sobre cultura e artes? Já informo que não sou especialista no tema e que encontro muita dificuldade para compreender alguns conceitos – em especial quando vou a exposições de arte pós-moderna repleta de ferros retorcidos. Como disse, no começo deste texto, minha relação mais profissional com artes foi um breve curso realizado há quase 20 anos em que aprendi a desenvolver alguns rabiscos em uma folha de papel. Mas o meu propósito não é fazer análises aprofundadas sobre expressões culturais, mas utilizar a cultura e as artes como instrumentos exemplificativos para tornar compreensíveis e familiares os direitos humanos.
Minha proposta é contribuir para nosso processo de reconstrução de preconceitos e reconstrução de conceitos mais completos, diversificados e humanizados. Ao afirmar que é o “nosso processo de reconstrução”, estou expressamente reconhecendo minhas deficiências. Todos os dias descubro um novo preconceito introjetado no meu ser que me faz reconhecer o longo caminho que ainda tenho a percorrer para me tornar uma pessoa melhor.
Nesta coluna, mensalmente, farei um convite para você refletir sobre o que você entende por direitos humanos assim como o que você entende por arte e cultura. Reveja se o seu conceito está a galerias fechadas e uma forma específica de expressão. Neste sentido, recomendo que você faça uma visita ao Instagram de Samuel de Saboia, jovem artista pernambucano, que vem fazendo sucesso pelo mundo afora e sendo comparado a Basquiat. Recomendo, ainda, ler uma breve entrevista que ele concedeu a este portal onde ele fala dos preconceitos que sofreu por não se encaixar ao estereótipo de artista que habita no imaginário de algumas pessoas.
Se o seu conceito para as artes e cultura permanecer o mesmo, sugiro que busque se descontruir e treine o olhar para outras formas de expressão artística. E é neste momento em que aponto a conexão que farei entre arte e direitos humanos. Eu realmente acredito que estes dois conceitos são, por muitas vezes, reproduzidos por maneiras equivocadas ou incompletas. Assim como arte não se resume à música erudita e aos quadros de Van Gogh, direitos humanos não se restringem a direitos de algumas pessoas. Arte é toda e qualquer forma de expressão que instigue os sentidos e sentimentos humanos, seja pela visão, olfato, paladar ou audição e nos emociona fazendo-nos lembrar que somos humanos e temos capacidade cognitiva e sensorial. Assim como direitos humanos são todos os direitos inerentes a toda e qualquer pessoa para a construção de uma sociedade onde todos sejamos livres para coexistirmos de forma igualitária e respeitosa.
Meu maior desejo é que esta coluna seja mais um tijolo na construção humanitária da nossa sociedade!