Mãe do fluxo: a mulher que ajuda dependentes na Cracolândia
Eliana Toscano oferece seu tempo e carinho a pessoas invisíveis para grande parte da sociedade
Por Caio Lencioni
Para Eliana Toscano, de 46 anos, as notícias e o preconceito relacionados à região da chamada Cracolândia, no centro de São Paulo, não interferem no seu trabalho. Depois de dois meses trabalhando no atendimento a dependentes químicos que circulam pela região, ela decidiu atuar como voluntária independente, para oferecer ainda mais atenção e carinho a essas pessoas.
Além de voluntária, Eliana é contadora de histórias, realiza palestras sobre o uso de drogas e trabalhou como professora, já que é formada em letras.
Ao chegar no chamado “Fluxo da Cracolândia”, a contadora de histórias logo é reconhecida por alguns usuários. Em meio a uma cena que para muitos é triste e assustadora, ela esboça um sorriso e começa a distribuir beijos e abraços. Em questão de segundos, a roda se forma e a atenção de Eliana começa a ser disputada.
A educadora diz que a ideia não é reprimir os usuários, já que “eles estão no seu momento”. “Muitos deles chegam em mim falando que estavam há um tempo sem usar a droga, mas que naquele dia quebraram o ciclo. Eles perguntam ‘você não vai brigar comigo?’. Eu digo que não e apenas pergunto como eles estão se sentindo”.
Uma dessas pessoas a quebrar o ciclo é Cláudio, que aparenta ter 25 anos. Ele se dirige a Eliana meio frustrado. “Poxa, eu já estava há 7 dias sem usar, mas hoje não deu”. Cláudio foi morar na rua quando tinha 17 anos, por ser maltratado pelo padrasto. “Ele fazia eu me ajoelhar no feijão e até já me bateu com um ferro”, conta, mostrando a cicatriz que tem no joelho. Eliana segura as mãos do rapaz, de forma afetuosa.
De acordo com Eliana, são frequentes os casos de pessoas que começaram a usar drogas e saíram de casa por problemas familiares. “Muitas dessas pessoas am por frustrações e traumas com os quais não sabem lidar”. Ela diz que o principal para essas pessoas em situação de vulnerabilidade é o carinho, a atenção e o afeto. “É elas saberem que há uma chance e que existem pessoas que se importam”.
A educadora trabalhou durante dois meses no Atende (tenda de atendimento emergencial), da Prefeitura de São Paulo, mas diz não ter se adaptado. Na visão dela, o viés assistencialista não funciona. “No primeiro dia de trabalho no Atende, eu já fui reprimida. Eu queria fazer com que eles se sentissem pertencidos ao lugar”, diz ao relembrar o episódio. “Todos os objetos de banho dos conviventes vinham em uma caixa. Os funcionários precisavam distribuir esses objetos para cada um, mas eu entregava a caixa, pois queria que eles exercessem a autonomia e se organizassem, separando os objetos entre si.” Além disso, chamaram a atenção dela várias vezes por se envolver demais com os dependentes.
Frases como “essa mulher vale ouro” e “cuidem bem dela” são repetidas por vários dependentes. Com seu vestido vermelho e seus dreads coloridos, Eliana parece dar um pouco de esperança a uma área caracterizada pelo cheiro peculiar do crack – que me parece indescritível – e por pessoas nitidamente fragilizadas. Inúmeros motivos pessoais levaram-nas ao mesmo refúgio: o crack.
“Muito obrigado mesmo por estarem aqui. A distração fez com que eu esquecesse de usar”, diz Márcio, que aparenta ter uns 50 anos. Cinco minutos antes, um amigo de Eliana havia retirado um pandeiro da mochila e a aglomeração foi rápida. Márcio surgiu com uma flauta e mostrou que música era o seu forte. Nenhuma nota fora. A melodia foi retribuída com sorrisos de todos ao redor.
Naquele momento, o clichê da frase “quem vê cara não vê coração” fez-se performático. De fato, a arte tem importância. Uma pessoa havia deixado de se refugiar em algo totalmente agressivo ao organismo para dar espaço a outra sensação.
De acordo com Eliana, são situações semelhantes a essa que a fazem continuar.
Desde o começo desse trabalho voluntário independente, Eliana vem estruturando o que ela chama de um “Novo Projeto Social” e sonha com a criação de uma casa de acolhida em que os dependentes possam se sentir realmente em um lar, junto de uma família que não depende de laços de sangue, mas de afeto. Enquanto o desejo de Eliana não se concretiza, as idas até a região da Cracolândia acontecem pelo menos três vezes por semana. “Às vezes, quando estou com tédio, em um domingo por exemplo, vou correndo pra lá”.
Depois da roda se dispersar, algo toma a atenção de Eliana e ela logo diz: “é isso que me parte o coração”. Uma criança acaba de acender o cachimbo, tragar e ficar estática. Não parece ter mais que nove anos de idade. Eliana não hesita em ir abraçá-lo, mas o menino não esboça nenhuma reação. Envolvido nos braços de Eliana, a criança apenas balbucia palavras sem sentido, enquanto olha fixamente para o chão.
Pergunto-me de onde Eliana tira forças para aguentar coisas assim. Ela é radiante e muito comunicativa. Bem articulada e alto astral, como muitos dizem, com suas pulseiras que lembram os hippies e aquele gestual ao falar típico de uma pessoa agitada. O fato é que essas características não nos salvam de frustrações.
A contadora de histórias já havia me contado sobre sua própria vida. Nos anos 90, ela chegou a morar em um barraco e ganhava dinheiro como traficante. O lucro obtido na venda de drogas era para sustentar o próprio vício em cocaína.
Tentei não tirar conclusões em relação à história de vida e o projeto. Fui direto à fonte e perguntei: “por que você faz isso?”.
Eliana, que sempre se mostrou pronta para argumentar e tem uma retórica própria de uma pessoa questionadora, pôs-se a chorar. “Quando estou salvando um, estou me salvando. Não me pergunte de quê, mas estou me salvando”. O momento me remeteu ao conceito de empatia. E sim, essa é a palavra que Eliana usa para descrever o que falta na sociedade hoje em dia: empatia. O que fazemos quando vemos alguém comendo algo que tirou do lixo?
Esta reflexão me fez lembrar de uma fala de Cláudio, o jovem que havia ido morar na rua por conta da tortura que vivenciava em casa e que já mencionei no começo deste texto. “Você sabe o que é se engasgar com Bombril? Eu sei”, disse-me o rapaz. De fato, nunca sabemos o que o outro ou.
Observação: com exceção de Eliana, os nomes presentes no texto são fictícios, para proteger a identidade dos personagens.
Pessoas interessadas em contribuir de alguma forma com o projeto de Eliana podem entrar em contato pelo e-mail [email protected].
02/05/2019 @ 17:13
[…] Toscano, 47, é conhecida como “Mãe da Cracolândia” por seus trabalhos de voluntariado independente na região da chamada Cracolândia, no centro de […]
04/08/2019 @ 13:52
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