A psiquiatrização da violência é cortina de fumaça

Por Rodrigo Fonseca Martins Leite
Minha lembrança mais antiga relacionada à psiquiatria foi quando presenciei uma pessoa com um quadro de agitação psicomotora, nas imediações da Rua Teodoro Sampaio no bairro Paulistano de Pinheiros lá pelos idos de 1980.
Eu tinha 4 anos de idade e estava com minha mãe. Me marcou a maneira agressiva e constrangedora como aquela pessoa foi contida. Eram policiais ou profissionais de saúde? Transeuntes? Nunca saberei ao certo. O fato é que quem ava parou para assistir um espetáculo triste e violento, num momento em que os asilos e manicômios eram o caminho natural para muitas pessoas no Brasil e no mundo. Ele seria violento? Perigoso? Merecia ser tratado daquele jeito? Estas são as perguntas atemporais que as mentes constroem automaticamente, desde sempre. Minha mãe me tirou daquela cena rapidamente, mas algo ficou. Aos meus olhos de criança, ele foi bravo e resistiu o quanto pôde. Seria um herói?
O fato é que a história e a ciência demonstram que estas pessoas mais são vitimizadas pela violência externa a elas do que violentas. Apenas 3% dos homicídios são cometidos por pessoas com quadros psicóticos em que há uma grave perturbação no juízo da realidade. Os outros 97% são cometidos por pessoas ditas normais. É o homem que mata a companheira por não tolerar o narcisismo ferido pela separação, o ladrão que mata sua vítima durante um assalto e afins. Em relação aos psicopatas, não se preocupe: Grande parte deles atua em áreas como o mundo corporativo, a política e a vida em geral, sem necessariamente cometerem crimes violentos.
Em relação aos massacres repugnantes em escolas e em creches que crescem no Brasil e no mundo, não é possível encontrar um padrão que permita classificar ou diagnosticar estes indivíduos, muito menos encontrar respostas simplistas como a exposição ao bullying ou a jogos violentos de computador.
Eles são sintomas de uma doença social – a epidemia de violência brasileira, que mata 50 mil pessoas por ano, entre jovens periféricos negros, mulheres, população LGBTQIA+, indígenas, jornalistas, alunos e professores. Nos últimos 20 anos houve 18 ataques nas escolas brasileiras. Certamente a piora da desigualdade, o armamentismo da população civil, o discurso de ódio hegemônico e o ataque sistemático à educação tendem a piorar e muito o cenário. Além disso, tendemos a importar o pior da América do Norte numa tempestade perfeita.
Não se pode alimentar narrativas que contribuam para excluir e estigmatizar mais ainda as pessoas com transtornos mentais. Encontrar bodes expiatórios é conveniente para anestesiar o protagonismo da sociedade e seu direito legítimo de exigir segurança, educação e demais políticas públicas. Mais do que medicações antidepressivas ou antipsicóticas, o tratamento para o Brasil é uma repactuação civilizatória para vencer o transe e a dessensibilização.
Os massacres de São Paulo e Santa Catarina acontecem próximos à Páscoa Cristã e Judaica. O simbolismo de ambas se refere à agem – seja entre a morte e a ressurreição de Jesus Cristo ou entre a escravidão e a liberdade do povo Judeu, respectivamente.
Não deve ser por acaso que as escolas são o palco de massacres. Elas tem por função ensinar a pensar criticamente a realidade em que se vive em prol da melhoria da vida humana. Por isso, talvez incomodem tanto os políticos e os facínoras. Que consigamos atravessar este deserto.
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*A opinião dos colunistas não reflete, necessariamente, a opinião do Observatório do Terceiro Setor.
Sobre o autor: Rodrigo Fonseca Martins Leite é médico psiquiatra pelo IPq HCFMUSP, mestre em políticas públicas e serviços de saúde mental, produtor da mídia social “psiquiatra da sociedade”.