Brasil: A Fome e os Cegos

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Foto montagem: Adobe Stocke à esquerda e reprodução da performance “Cegos”, da Desvio Coletivo e Coletivo Pi

Por Márcia Moussallem

No Brasil, nos últimos quatro anos, fomos acometidos violentamente por duas endemias: o aumento da fome e a cegueira de uma parte da população.

Analisar e refletir sobre essas questões cruciais são fundamentais para compreendermos o fundo do poço que o Brasil chegou.

Estamos saindo desse poço com o resultado das últimas eleições de 2022. Conseguimos voltar a respirar, sentir alívio e esperança diante de um novo governo comprometido com a democracia, com as políticas públicas e o combate à fome.

Contudo, nesse fundo do poço ressurge com toda força um número grande de homens e mulheres que perderam os seus olhos e estão perdidos, como zumbis.

Esse cenário me remeteu à releitura de três livros: “Psicologia das massas e análise do eu”, de Sigmund Freud; “Ensaio sobre a cegueira”, de José Saramago e “A descoberta do mundo”, com a crônica “Daqui a vinte e vinco anos”, de Clarice Lispector.

No primeiro livro, de Freud, é importante para compreendermos a atualidade quando aborda três fenômenos sociais: o racismo, a intolerância religiosa e o fanatismo político.

Outro ponto a ser destacado são as características do indivíduo que se encontram na massa: “o desparecimento da personalidade consciente, predomínio da personalidade inconsciente, orientação dos pensamentos e sentimentos na mesma direção por meio da sugestão e do contágio, tendência imediata das ideias sugeridas (…) o indivíduo não é mais ele mesmo; tornou-se desprovido de vontade (estado hipnótico)”.

É nesse estado que a massa se encontra privada de qualquer senso crítico, perdendo totalmente a responsabilidade por seus atos. Isso explica os recentes episódios ocorridos em Brasília. Amigos, familiares, conhecidos, perdidos em meio à paranoia, delírio, manipulação e violência.

No segundo livro, José Saramago remete à cegueira, ao medo. “O medo cega. Já éramos cegos no momento em que cegamos, o medo nos cegou, o medo nos fará continuar cegos”.

Nessa agem do livro, ele também nos faz pensar sobre o que assistimos todos os dias: a propagação da “cultura do medo” nos meios de comunicação e, em especial, nas redes sociais.

Nesse caos, constatamos que toda narrativa em defesa da ciência, da racionalidade e dos fatos verdadeiros, são negados. “Cego”, como dizia Saramago, “que não quer ver, cegos vivos, que já estão mortos”.

Diante, disso, pergunto. É possível, começar a ter olhos? É possível voltar ao sentido da responsabilidade? O sentido da racionalidade ? É possível voltar à vida?

Finalizo esse pequeno artigo refletindo sobre a mais dolorosa endemia: a fome de inúmeros brasileiros. Na crônica: “Daqui a vinte e cinco anos”, de Clarice Lispector, ela nos arranca lágrimas. “Posso imensamente desejar que o problema mais urgente se resolva: o da fome. Porque não há mais tempo para esperar: milhares de homens, mulheres e crianças são verdadeiros moribundos ambulantes”.

Sim, a fome é cruel, a fome é imoral. É o nosso mais urgente problema.

Como Clarice, desejo que possamos virar essa página da nossa história, e que todos os brasileiros tenham direitos a uma vida digna. Como Saramago, desejo que “a responsabilidade dos que tem olhos” possa contribuir para a construção de um novo Brasil.

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*A opinião dos colunistas não reflete, necessariamente, a opinião do Observatório do Terceiro Setor.

Márcia Moussallem

Assistente Social e Socióloga. Mestra e Doutora em Serviço Social (PUC/SP); MBA em Gestão para Organizações do Terceiro Setor. Professora Universitária. Publicou seis livros. Colunista do Observatório do Terceiro Setor.

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