1 milhão de advogados, 100 milhões de processos e pouca Justiça

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Dentre todo o rol de Direitos Humanos, o direito de o à Justiça talvez seja um dos mais estratégicos: afinal, a possibilidade de acionar o Poder Judiciário quando ocorre uma violação de direitos é o pilar que sustenta a estrutura democrática composta pelos outros dois Poderes responsáveis por elaborar as normas e executar seu conteúdo. Qualquer falha nesta execução que viole os direitos de um cidadão é ível de correção pelo Poder Judiciário.

Portanto, seria lógico e justo que o Estado estabelecesse o o à Justiça – aqui compreendido como a possibilidade fática de propor demandas no Poder Judiciário, bem como de ver-se defendido em juízo quando demandado – como prioridade, o que envolve desde infraestrutura física até serviço adequado, suficiente e eficaz de Defensoria Pública.

Os números brasileiros referentes ao sistema de justiça impressionam: em 2015, o Brasil atingiu a marca de 1.017.262 advogados inscritos no Conselho Federal da OAB , enquanto tramitam aproximadamente 100 milhões de processos, de acordo com levantamento realizado pela Associação dos Magistrados Brasileiros .

Mas será que isso implica assegurar o direito fundamental de o à Justiça aos cidadãos?

A existência de tão elevado número de advogados encontra facilmente um a explicação: é impossível deixar de notar que a quantidade de cursos de Direito sofreu uma explosão nas últimas duas décadas – contudo, sem qualquer controle de qualidade. Entre 1991 e 2011, as autorizações do MEC para abertura de cursos de direito contaram com um aumento de 612%: dos 165 credenciados em 1991, em 2011 chegou-se a 1.174 cursos em todo Brasil (sendo 241 em SP), com a estarrecedora média de 50 novas faculdades abertas a cada ano . Em 2015, chegou-se a 1.266 faculdades, sendo que destas apenas 139 foram contempladas com o Selo de qualidade da OAB . A conclusão é inescapável: é estatisticamente impossível manter a qualidade dos mais de mil cursos existentes no Brasil, o que revela indicativos nos frequentemente elevados índices de reprovação no Exame de Ordem, condição para exercício da profissão.

Apesar deste altíssimo número de advogados por habitante, ainda assim o o à justiça pela população (em especial a hipossuficiente) é deficitário: o Brasil é um país com elevado índice de litigiosidade, com mais de 100 milhões de processos tramitando atualmente (o que corresponderia a aproximadamente 01 processo a cada 02 habitantes). Porém, espantosos 95% destes processos tem como partes o governo (União Federal, Estados e Municípios respondem por 51% dos processos em trâmite), bancos (que são partes em 38% dos processos), e empresas de telefonia (6% dos processos), dados estes que certamente refletem uma dificuldade à judicialização de conflitos, já que pessoas físicas chegam menos ao sistema judiciário.

Considerando este dado, sobreposto aos números a indicar que não há advogados gratuitos o suficiente para todos, é possível concluir que o o à justiça fica obstacularizado por conta disto: embora em 1988 a Constituição Federal tenha estabelecido que todo o trabalho de assistência judiciária da população carente nas demandas da Justiça Estadual deveria ser realizado pelas Defensorias Públicas dos Estados, O Estado de São Paulo somente instituiu sua Defensoria Pública no ano de 2006. Até então o serviço público de Assistência Judiciária era exercido pela Procuradoria de Assistência Judiciária (PAJ), vinculada à Procuradoria Geral do Estado e, de forma complementar, pelos advogados participantes do convênio de assistência judiciária então firmado entre a OAB e a PAJ. Com a criação da Defensoria Pública de São Paulo em 2006, foi dada aos procuradores de assistência judiciária a opção de migrarem para a carreira de defensor público, que foi escolhida por 87 destes profissionais.

Os defensores públicos são funcionários públicos bacharéis em Direito, submetidos a concurso público para esta finalidade, exigindo-se ainda aprovação prévia no exame da Ordem dos Advogados do Brasil. Já os defensores dativos são advogados que se inscrevem no Convênio celebrado entre a Defensoria Pública e a OAB-SP, e ficam à disposição para serem nomeados em casos encaminhados pela Defensoria Pública quando a instituição não consegue absorver a demanda. A única exigência legal em relação à qualificação dos advogados participantes do Convênio é que tenham sido aprovados no exame da OAB.

Em 2015, o Estado contava com 719 defensores, para a Capital e demais comarcas, quantidade evidentemente insuficiente para a volumosa demanda paulista. O convênio para prestação de assistência jurídica suplementar com a Seccional São Paulo da Ordem dos Advogados do Brasil busca suprir esta demanda onde os serviços da Defensoria forem insuficientes, e o encaminhamento de casos para os profissionais conveniados varia conforme a demanda e realidade de cada local.

Os dados que trago aqui mostram, de um lado, um uso excessivo e inflacionado do sistema de justiça, e que parecem ser um atrativo mercado de trabalho para os cada vez mais numerosos calouros nas faculdades de Direito. Mas, de outro, ainda são escassos os serviços de assistência judiciária gratuita para aqueles que talvez mais precisem ter direitos assegurados.

É preocupante viver em um país onde se precise tanto ar as instituições de Justiça, pois isto reflete que a lei, ao menos em tese, foi descumprida, e algum direito foi violado. Porém, enquanto persistir esta situação, é necessário repensar os moldes de funcionamento deste braço do poder público, fundamental para a realização dos demais direitos fundamentais.

Maíra Cardoso Zapater

É Doutora em Direitos Humanos pela USP, graduada em Direito pela PUC (SP) e Ciências Sociais pela USP. É especialista em Direito Penal e Processual Penal pela Escola Superior do Ministério Público de São Paulo; professora, pesquisadora e autora do blog deunatv (https://deunatv.wordpress.com/).

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